REFLEXÃO

Arte: O que é Arte?

Arte: O que é Arte?

O que faz de alguém um artista: a técnica, a intencionalidade, a estética? Tais parâmetros já foram superados ou a arte sempre dependerá deles?

O que faz de alguém um artista: a técnica, a intencionalidade, a estética? Tais parâmetros já foram superados ou a arte sempre dependerá deles?

Publicada há 8 anos

Por José Renato Sessino Toledo Barbosa


Delacroix. ‘A liberdade guiando o povo’

No geral, a arte mergulhou num vazio que não aponta para propósito nenhum. Estética perdeu a conotação



Durante a película Intocáveis, há uma cena na qual Philippe está numa galeria com seu auxiliar Driss. O tetraplégico observa um quadro, ao lado do diretor da mesma. Comentam acerca da pintura. Para Driss é uma conversa de malucos. Afinal, para ele, aquilo são borrões, rabiscos, tintas derramadas a partir das quais os outros dois discorrem acerca de questões que os olhos “puros” e “ignorantes” deste são incapazes de constatar. Ao final acertam o preço: quarenta mil euros (hoje, em reais, mais de cento e sessenta mil). Driss indignado, estupefato; resolve pintar também. Munido de pincéis, rolinhos, tela e tintas, produz sua “obra”. 


Philippe vê o resultado. Leva à galeria. Diz ao diretor que se trata de um artista que está a expor em Londres e, em seguida, apresentará suas telas em Berlim. O pobre homem é assolado por uma dúvida: “Se comprar, posso me arrepender. Se não comprar, me arrependerei ainda mais”. Paga onze mil euros (em reais, quarenta e quatro mil). Detalhe: Driss nunca havia pintado nada. Ele é um artista? O que faz de alguém ser merecedor dessa alcunha? Afinal, o que é a ARTE? Recuperar sua história é uma possibilidade de resposta. Falamos de “Arte na Antiguidade” desde os primórdios da humanidade. Quando se produziam as pinturas rupestres, algumas interpretações afirmam que eram a linguagem para expressar o cotidiano, aquilo que se via pela primeira vez. Que afetava principalmente os sentidos. Para isso a Grécia nos legou a palavra aisthésis, cuja tradução, “estética”, nos remete a “aquilo que sinto”. Que afeta os sentidos. Logo, inferimos que a arte, produzida pela estética, tem a pretensão de aguçar, provocar sentidos, criar signos e significados, razão. Portanto, arte nos faz sentir e pensar?


 Voltemos à sua história. Tomemos o Classicismo como ponto de partida, na medida em que agrega os padrões greco-romanos recuperados pela Renascença. Essa estética tinha como propósito produzir uma linguagem que expressasse tudo aquilo que se pensava e sentia. O mundo medieval ruía; o predomínio dos dogmas católicos, da Escolástica e Patrística estava no eclipse. A razão passava a ocupar o lugar da fé. A Filosofia buscava a redenção frente à Teologia. Mudanças à vista. Primeiramente percebidas por artistas e filósofos. Por quê? Visão privilegiada. O Teocentrismo começa dar lugar ao Antropocentrismo. Agora o homem será o cerne das questões e das respostas. Isso não significa negar Deus e a Fé. Ao contrário, enaltecia-os. Era, duplamente, uma rendição a Deus, pois o homem é sua maior criação — diziam os atores da ruptura. Desde o período medieval, a cisão estava em curso. 


Havia uma exigência da Igreja na produção pictórica: figuras humanas precisavam ser menores que seus santos, sempre em destaque, com auréolas. Humanos retratados desprovidos de qualquer sensualidade. Retos. O itálico Giotto di Bondone começa a operar a passagem. 


Traz em sua obra traços de mudanças. Processo lento, pois a Inquisição rondava por todos os cantos. No Cinquecento, o Classicismo faz nascer o rebento: agora o humano é o destaque. Retratado com toda plenitude. Pintado ou esculpido com todas as fibras, músculos e ossos. Medidas perfeitas. Proporção e perspectiva dão o tom às produções. Tudo exato. Basta ver Da Vinci, Rafael, El Greco, Tintoretto, Ticiano, dentre outros. As dúvidas suscitadas pelo cartesianismo e pelo empirismo contribuem com o Barroco. Essa estética escancara o homem cindido: Luz e Trevas, Fé e Razão, Céu e Inferno. 


ARTE. O QUE É ARTE? 


Bosch talvez seja seu maior representante. Também Rembrandt, Rubens, Van Eyck, Jan Vermeer. De modo geral, os holandeses são os maiores nesse contexto. No “Século das Luzes”, a Crítica da Razão Pura de Kant e os filósofos iluministas legaram ao século XVIII outras expectativas. Razão e Experiência dançavam sob a batuta do equilíbrio, da mediação. O homem reencontrou-se. Combinou fé e razão. “Aprendeu separá-las”, harmoniosamente. Música de Mozart para celebrar! 


A estética em questão é o Romantismo, cuja maior preocupação é retratar sentimentos de um humano que busca reconciliar-se, consigo, com Deus e com o mundo. É o Classicismo revisitado. Com sentimentos. Delacroix, Turner, Blake e Amoedo — este último brasileiro. As Revoluções Americana, Francesa e, sobretudo, a Industrial produziram rupturas na mentalidade. Com a estética não foi diferente: o momento é de escancarar os dramas humanos do cotidiano. 


O Realismo nasce com essa empresa. Courbet e Manet na pintura; Rodin na escultura. Todavia, o século XIX nos legou grandes rupturas estéticas: o Impressionismo e o Expressionismo. O primeiro foi nomeado jocosamente. Os artistas desse movimento aceitaram a pretensa ofensa como galhofa e adotaram o desígnio. 


Para o Impressionismo não era mais necessário, nem fazia sentido, retratar a realidade à perfeição do Classicismo. A fotografia recém inventada realizava esse papel. Interessava retratar o “momento que passa”. Congelar o instante. Portanto, não era possível se ater a detalhes. Os rostos, a vegetação, o céu, os acidentes geográficos, tudo em largas pinceladas. Até mesmo cenas do cotidiano ou naturezas mortas, como as pintadas pelo seu precursor Cézanne. Acrescentem-se à lista de artistas dessa estética: Degas, Monet, Renoir, Pissarro, também Van Gogh e Gauguin. No Brasil há Eliseu Visconti e o grande Almeida Junior.


O Expressionismo teve como objetivo retratar as expressões, as feições e aflições. A tela O grito de Edvard Munch talvez seja seu exemplo mais bem acabado. Porém, há o gênio indomável de Van Gogh — aflição — e Paul Gauguin. Somente para permanecer em monumentos. A avidez do capitalismo, as grandes transformações políticas, econômicas e científicas do mundo decretam a morte da Belle Époque e sua inocência. É o século XX. O Futurismo como estética nasce com Marinetti na Itália a fim de enaltecer as máquinas e o “progresso”. Todavia, esses também nos legam a Primeira Guerra Mundial em 1914. O conflito bélico de proporções catastróficas gera o temor e a incerteza do medo e do fim próximo. O niilismo paira na Europa. 


E a Arte? Para expressar esse descompasso, essa crise, alguns artistas passam a propor o nada. De um dialeto africano, dada quer dizer “nada”. Assim, nasce o Dadaísmo. O nada como não fazer. A produção artística se reduz a ready mades de Duchamp e Kurt Schwitters. Juntar produtos industrializados, até pedaços destes, e produzir esculturas, “montanhas de lixo”. Exemplos: a roda de bicicleta, o colete e o urinol de Duchamp. A poesia de Tristan Tzara, sem lógica ou nexo. Deu-se um bom passo à frente nesse propósito: o Cubismo. Movimento que objetiva reconstruir ontologicamente o humano. É como se o mesmo fosse estilhaçado (e de certa forma foi) e, aos pedaços, fosse reconstruído num mórbido quebra-cabeça. São figuras geométricas, “manufaturadas” no desespero, na agonia e no êxtase do novo século, no pós-guerra. Picasso é seu maior gênio. Ainda no início do século XX, a Interpretação dos Sonhos de Freud e o inconsciente nos legaram o Surrealismo. A arte do suprarreal, do além do físico, da psique. A ordem agora é produzir na realidade os sonhos. O onírico torna-se realidade.


Salvador Dalí é seu ícone na pintura. Todavia, há que se ressaltar Max Ernst e Chagall. Há ainda a arte abstrata contemporânea, cujos maiores nomes são Miró, Modigliani, Kandinsky. No Brasil, gênios pós e pré-semana de 1922: Volpi, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Rebolo, Di Cavalcanti, Cícero Dias, Aldemir Martins, Arcangelo Ianelli, Aldo Bonadei, Hélio Oiticica... Na metade do século passado, a última grande Estética: a Pop Art de Roy Lichtenstein e Andy Warhol, por exemplo. A temática: introduzir na produção artística cenas do cotidiano, seus elementos. Alguns espasmos na segunda metade do século passado. 


E depois? No geral, a arte mergulhou num vazio que não aponta para propósito nenhum. Estética, no sentido literal do termo, perdeu a conotação. A notoriedade a qualquer preço, os “quinze minutos de fama” propalados por Warhol suprimiram a necessidade de estudo, intencionalidade estética, conhecimento, domínio de técnica, enfim, olhar artístico. 


Se nos ativermos a algum dos momentos citados — a todos eles, além desses, ou outros que a memória ou a ignorância possam trair —, encontraremos olhares, conhecimento, intencionalidade. Haverá aesthésis. Do contrário, estamos fadados a brincar de fazer arte. Como Driss.


Expressionismo.  ‘O grito’, de Edvard Munch



* José Renato Sessino Toledo Barbosa - Professor na Escola JAP e na UNIJALES




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