A prescrição nos Tribunais de Contas
por: Dimas Ramalho*
Por décadas, mesmo após a Constituição de 1988, as atribuições das Cortes de Contas permaneceram imunes ao fenômeno da prescrição. Princípios como os da Supremacia do Interesse Público e da Indisponibilidade dos Bens Públicos juntamente com a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário (art. 37, § 5º, da CF) concorriam para outorgar aos Tribunais de Contas a prerrogativa de atuação atemporal.
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a referendar esse entendimento como, por exemplo, no Mandado de Segurança 26.210/DF.
Todavia, mais recentemente, esse tema voltou a ser enfrentado pela jurisdição constitucional.
Desta vez, com fundamento na segurança jurídica e partindo de uma interpretação mais restritiva do artigo 37, §5º, da Constituição (Tema 897), o Supremo, em sede de reiteradas ações mandamentais, fixou um novo entendimento, segundo o qual: “a prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada integralmente pela Lei 9.873/1999, seja em razão da interpretação correta e da aplicação direta desta lei, seja por analogia” (MS 32.201/DF).
Reconhecendo a ausência de legislação específica sobre a matéria, o Tribunal Constitucional propõe a Lei Federal 9.873/1999, que trata da prescrição da pretensão punitiva da Administração Federal, como diploma integrador da lacuna.
Nesse contexto, o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) editou a Resolução 344/2022, de 11/10/2022, na qual reconhece, por meio de ato infralegal, a existência de marcos prescritivos sobre suas próprias atribuições constitucionais. Essa normativa, seguindo a linha jurisprudencial imposta, socorre-se do prazo prescricional ditado pela referida lei federal, de cinco anos, bem como estabelece critérios interruptivos à semelhança dos dispostos na legislação paradigma.
Mas, considerado o hiato legal, as reiteradas decisões da Corte Constitucional e a edição da Resolução 344/2022 pelo TCU, indaga-se se os Tribunais de Contas dos estados e municípios estão obrigados a estabelecer atos normativos contemplando prazos prescricionais para limitar, temporalmente, o exercício de suas competências.
Para responder a esse questionamento, é preciso compreender a natureza dos provimentos do Supremo que reconheceram a prescrição para as ações do controle externo.
Recordo que os precedentes que tratam dessa temática foram expedidos em sede de Mandados de Segurança, tendo a Corte de Contas da União figurado como autoridade coatora, em razão da competência estabelecida pelo artigo 102, I, “d”, da Constituição.
Logo, a real eficácia de todo esse conjunto decisório opera-se somente entre as partes e nas estreitas balizas dos casos concretos definidos no processo de modo que não se pode estender, automaticamente, a jurisprudência do STF sobre a prescrição no âmbito do TCU aos demais Tribunais de Contas da Federação.
É fato que julgamentos proferidos pela mais alta corte do país influenciam, muitas vezes de modo determinante, a interpretação e a aplicação da lei. Entretanto, conforme a disciplina processual, o rito abreviado e estritamente vinculado às vicissitudes do caso concreto tornam a espécie do Mandado de Segurança inadequada à dissipação de efeitos transcendentes.
Por outro lado, há muitas ressalvas quanto à aplicação analógica da Lei 9.873/1999 ao âmbito do controle externo dos estados e municípios.
Além de ser uma legislação privativa da União cuja extensão aos demais entes da federação resulta prejudicial ao pacto federativo, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (AgInt no REsp. 1409267/PR), é preciso reconhecer, também, que os marcos temporais por ela definidos não se amoldam perfeitamente ao modo de ser dos Tribunais de Contas.
Isso porque o processo administrativo derivado da lei federal em comento é eminentemente punitivo, enquanto a lógica do processo de contas é de contraste, sendo a sanção uma das possíveis consequências.
Chamo a atenção, ainda, para a única hipótese de suspensão da prescrição prevista no artigo 3º daquele diploma, segundo o qual o prazo não fluirá durante a vigência de termo de compromisso firmado para a alteração de conduta lesiva.
Esses instrumentos compromissórios são figuras típicas do processo administrativo sancionador, mas quase inexistentes no ambiente da atuação dos Tribunais de Contas. Noto, nessa linha, que o próprio TCU, ao editar a Resolução 344/2022, ampliou os casos de suspensão do prazo prescricional, indo além do previsto na legislação indicada como norma de colmatação.
Advirto sobre a importância de que as hipóteses de início, interrupção e suspensão da prescrição sejam claras, seguras e perfeitamente adaptadas ao regime jurídico das Cortes de Contas, do contrário pode-se inviabilizar o regular exercício da missão constitucional do controle externo, com a extinção prematura de seu direito de agir.
Nesse sentido, verifico que o direito comparado pode oferecer soluções justas e pertinentes à realidade processual dos Tribunais de Contas, confirmando o aspecto negativo da adoção irrefletida da Lei 9.873/1999. Particularmente, cito a legislação da Corte de Contas Italiana que, nos termos do item 3 do artigo 66 do Codice di Justizia Contabile, suspende o prazo prescricional durante todo o período de duração do processo.
Ressalto, ainda, que eventual reconhecimento da prescrição na esfera dos Tribunais de Contas pode impossibilitar a recomposição de dano ao erário decorrente de atos dolosos de improbidade cujo ressarcimento é imprescritível. Isso porque, nesses casos, é comum que os processos de contas sejam levados ao conhecimento do Ministério Público, a quem compete enquadrar a conduta nas hipóteses da Lei 8.428/92 e promover a efetiva ação de reparação.
Portanto, não só óbices de índole processual desaconselham a aplicação da jurisprudência do Supremo na matéria em relação aos Tribunais de Contas dos estados e municípios, mas também a falta de identidade da Lei 9.873/1999 com o controle das contas públicas pode se revelar prejudicial à preservação das competências que a própria Constituição atribuiu aos organismos de controle.
Ponderadas todas essas circunstâncias, entendo, inclusive, que não caberia às demais Cortes de Contas da Federação prever, jurisprudencialmente ou em ato infralegal, termos prescricionais para limitar o exercício de suas atividades institucionais. Por sua vez, calcado nessas reflexões, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) editou a Deliberação de 22/09/2022 cujo artigo 1º prevê: “No âmbito do controle externo, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo continuará atuando de acordo com o regime constitucional e legal vigente, que não estabelece prazos prescricionais para o exercício da pretensão punitiva e ressarcitória”.
Concluo, assim, afirmando que para salvaguardar as competências do controle externo – que, sob perspectiva finalística, promovem e tutelam interesses da coletividade – não é possível estender ao regime jurídico de todos os Tribunais de Contas os efeitos de decisões judiciais que, circunscritas à lide, reconheceram balizas prescricionais para a atuação da Corte de Contas da União.
*Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)