CULTURA!

MÚSICA PARA PREENCHER O SILÊNCIO

MÚSICA PARA PREENCHER O SILÊNCIO

“Em suma, o hábito de parar para ouvir música se perdeu. Definitivamente não temos mais tempo para isso. Quando há tempo, não há disciplina, nos tornamos seres inquietos”

“Em suma, o hábito de parar para ouvir música se perdeu. Definitivamente não temos mais tempo para isso. Quando há tempo, não há disciplina, nos tornamos seres inquietos”

Publicada há 7 anos

Por Sandro Muniz 


Nesses tempos modernos, a música tem se feito onipresente em nosso cotidiano. Soa ininterruptamente nas lojas, clubes, elevadores, nos restaurantes, nos carros, no aparelho de som de casa ou nos fones com o mp3 player. A música soa a todo tempo em programas televisivos, comerciais e novelas. Nos games, a música praticamente nunca cessa. No cinema, vez ou outra o cineasta esvazia parte do conteúdo musical para que, na condição de trilha sonora, ela mantenha-se soando mesmo por detrás de diálogos e explosões. Somando-se a isso o amplo e fácil acesso a qualquer música; podemos ouvir o que quisermos a qualquer hora e o tempo todo! Até meados do século XV, música era coisa rara. A menos que você mesmo tocasse ou cantasse para si próprio, teria de ir a algum templo para ouvir música. A música entoada nas missas cristãs, embora seja exclusivamente religiosa e de caráter cerimonial, era forte atrativo para o público às igrejas. Na Renascença, o surgimento de uma classe endinheirada (burguesia), enriquecida pelo crescente comércio, ávida por esbanjar seu poderio econômico e mostrarse igual aos privilegiados de sangue azul, passou a enfeitar suas casas com especiarias de artesanato raro, a custear pintores para retratarem seus cotidianos e a acolher músicos para alegrar suas festividades e eventos particulares. Todas essas produções sem uma utilidade prática, criadas por artesãos altamente talentosos e expostas apenas como objetos de ostentação: tudo isso passou a ser chamado pela primeira vez de Arte. Graças a esses financiadores de arte, chamados também de mecenas, além dos templos, agora podia-se ouvir música também nas propriedades desses tais mecenas (se houvesse convite, evidentemente). Tanto burgueses quanto nobres, por tornarem-se financiadores das artes, ampliaram o acesso à música, mostraram-se mais permissivos que a Igreja com relação à criação musical de seus compositores e propiciaram a inovação musical. Como não se bastasse o escasso contato com a música, esta acontece no tempo e deixa de existir assim que o músico afasta as mãos do instrumento. O Filósofo Gilles Deleuze fez uma descrição do tempo que, embora complexa, é também uma exímia descrição da existência musical: “O que é atual é sempre um presente. Mas justamente o presente muda ou passa. Pode-se sempre dizer que ele se torna passado quando não é mais, quando um novo presente o substitui. Mas isso não quer dizer nada. É mesmo preciso que ele passe para que o novo presente chegue, é mesmo preciso que ele passe enquanto ele é presente, no momento em que ele o é. É preciso, pois, que a imagem seja presente e passado, ainda presente e já passado, de uma só vez, ao mesmo tempo. Se ela não fosse já passado ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que ele foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo, a imagem virtual, a imagem em espelho” (Deleuze, 1985). Sabendo que a música acontece no tempo, cada instante é valioso! O que se ouve está no presente, o que se ouviu é agora passado e, por fim, só o que fica é a lembrança. Basicamente, para que haja o entendimento da obra musical como unidade e para que haja uma compreensão em sua totalidade, é fundamental que haja muita atenção e uma boa memória! A música, assim como o texto, tem começo, meio e fim. Uma má compreensão do meio acarretará o não entendimento de sua conclusão, a má compreensão do meio é provavelmente causada pela falta de atenção na leitura do início. Reler o texto ou a parte onde o entendimento se perdeu é a solução. Isso é possível porque o texto está à mão. A música não está à mão! Em tempos em que não há gravação, onde o único contato com música se dá ao vivo, reouvir a obra não é uma opção. Perder um instante de performance musical resulta num prejuízo irreparável. O compositor, sabido de que o produto do seu trabalho atua no tempo, consciente de que a plateia ouvirá sua música pela primeira vez e que provavelmente será a única audição da peça musical por parte daquelas pessoas e ainda conhecendo as limitações da plateia, desenvolvia o discurso musical valendo-se propositadamente de repetições específicas nos momentos certos, garantindo a compreensão de trechoschave e conduzindo assim a escorregadia atenção do ouvinte, trabalhando pela música e pelo espectador ao mesmo tempo. O compositor é um artista! A plateia, por sua vez, sabendo que o prazer de ouvir música era um luxo e luxo de curta duração, valorizava a performance com ouvidos atentos. A realidade musical hoje é totalmente diferente. Hoje temos replay! Temos loop! Criamos playlists! Somos definitivamente uma geração privilegiada! Entretanto, penso que, por menor e menos frequente que fosse o acesso que os antigos tinham à música, eles aproveitavam e absorviam mais do pouco que tinham que nós aproveitamos do muito que temos. Isso porque colocamos para tocar nossas playlists e, passados 15 minutos, somos na maior parte das vezes incapazes de dizer quantas músicas tocaram. O mesmo acontece no restaurante. Enquanto comemos, um músico toca. Terminamos de comer, pagamos e não notamos que o músico parou de tocar, ou que mudou o gênero musical, ou pior, nem sabemos dizer o que foi tocado! Não é que a música tenha perdido o interesse, nós é que fizemos dela mero elemento preenchedor de silêncios. O porquê da necessidade de todo silêncio ter de ser preenchido por música é assunto passível de inúmeras reflexões. Há de se considerar como contribuintes para uma escuta desatenta o esvaziamento do conteúdo musical e a “receita de bolo” seguida a ferro e fogo pelos produtores musicais, que
torna as músicas populares atuais todas idênticas entre si. Mas o fato de usarmos a música para preencher silêncios fez com que a música, na sua atual abundante presença, se confundisse com os tantos ruídos urbanos, passando a receber pelo nosso ouvido o mesmo tratamento. Em suma, o hábito de parar para o u v i r música s e perd e u . Defi nitivam ente n ã o temo s mais tempo para isso. Quando há tempo, não há disciplina, nos tornamos seres inquietos. Acredito que ouvir música é como comer. Devemos desfrutar do momento! Comer rápido ou com pressa a caminho de algum lugar às vezes é necessário. Por mais frequente que isso infelizmente aconteça, entendemos que não é saudável, além de ser um desperdício de ocasião. Ouvir música é semelhante. Vá ver um músico tocar ao vivo. Preste atenção. O músico expressa muito com o corpo e, vendo sua maneira física de expressão, identificamos então nos sons afetos que antes passavam despercebidos. Tratando de repertório orquestral, onde geralmente não há letra cantada, toda a narrativa musical e os incontáveis detalhes se perdem quando não nos silenciamos para permitir que a música nos conduza. Vendo a maneira elaborada e a dificuldade técnica que, embora o músico não transpareça ou até mostre facilidade, compreendemos melhor a riqueza e o valor de tudo o que nós temos deixado passar. 



Não é que a música tenha perdido o interesse, nós é que fizemos dela mero elemento preenchedor de silêncios


* SANDRO MUNIZ, MÚSICO E COMPOSITOR, É MAESTRO DO MUNICÍPIO DE FERNANÓPOLIS


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