Artigo: O fulanismo na política
Por: Gaudêncio Torquato
A vespa pousou na cabeça de uma serpente, pondo-se a atormentá-la com seu ferrão. Louca de dor, não podendo defender-se de seu inimigo, a serpente meteu a cabeça debaixo da roda de um carro, morrendo junto com a vespa. Esopo mostra, nesta fábula, que certas pessoas não hesitam em morrer arrastando seus inimigos e, até amigos. Pois é isso que está ocorrendo na esfera política nacional.
Atores políticos do situacionismo e do oposicionismo estão se comportando como vespas e serpentes. Ao tentarem construir uma pira para queimar o nome de Flávio Dino, indicado por Lula para o STF, e ainda chamuscar a imagem do procurador Paulo Gonet, indicado para assumir a PGR, caracterizando-o como um conservador próximo ao bolsonarismo, senadores e grupos do próprio petismo colocam em combustão o tênue fio com que o presidente da República costura a teia de articulação com o Congresso.
Os dois indicados devem passar pelo crivo, mesmo sendo gravetos da fogueira que, de maneira cíclica, acende as tensões entre os três Poderes. O fato é que a crise crônica da política se alimenta de tensões fabricadas por uns e outros com o intuito, quase sempre, de ganhar dividendos. E tem como origem a fulanização da política, a personalização do poder, o vedetismo midiático, que esvaziam o debate político da força das ideias, substituídas pela expressão particularizada.
A luta política no Brasil reduz-se a uma rivalidade entre pessoas e grupos. Lula, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luis A.Barroso, Arthur Lira, Rodrigo Pacheco, Fernando Haddad são, entre outros, os protagonistas que ocupam imensos espaços na mídia, a atestar a fulanização da política e da justiça. O Judiciário fulanizado? Pois é o que temos.
Afinal, onde estão as ideias, os programas, a doutrina, a substância? Será que a política é apenas uma luta de tele-catch? Ou um passeio no lago de Narciso? Os atores se enrolam no teatro do falso retrato, da autocontemplação, que mostra como os homens públicos se banham nas águas de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem. Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali até a morte.
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perdem o poder, mas não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade? O maior dos males é o da inação, o da inércia, o da perda do senso. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo. Os malabaristas da política desempenham a peça da mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a promessa, a palavra que vale é a sua.
O convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em “deuses” de um Olimpo cada vez mais povoado. A que se deve esse tipo de distorção? Às nossas heranças culturais. Entre as quais, a tradição da oralidade. Que penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
Duas historinhas, muito conhecidas, mostram os dois pólos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis, do candidato em comício em uma cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”. A segunda historinha é a do candidato a deputado, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus governantes, eleger os seus deputados. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
No momento certo, tirou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu da liberdade”. Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata a razão.
O narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, são dois tipos comuns às massas. O encontro do ruim com o pior, de Narciso com Justo Veríssimo, canhestro personagem de Chico Anísio, é um traço perverso de nossa seara política.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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