MINUTINHO
Mágoa
Por: André Luiz / Francisco Cândido Xavier
Se a mágoa lhe bate à porta, entorpecendo-lhe a cabeça ou paralisando-lhe os braços, fuja dessa intoxicação mental enquanto pode.
Se você está doente, atenda ao corpo enfermiço, na convicção de que não é com lágrimas que você recupera um relógio defeituoso.
Se você errou, busque reconsiderar a própria falta, reajustando o caminho sem vaidade, reconhecendo que você não é o primeiro e nem será o último a encontrar-se numa conta desajustada que roga corrigenda.
Se você caiu em tentação, levante e prossiga adiante, na tarefa que a vida lhe assinalou, na certeza de que ninguém resgata uma dívida ao preço de queixa inútil.
Se amigos desertaram, pense na árvore que, por vezes, necessita da poda, a fim de renovar a própria existência.
Se você possui na família um ninho de aflições, é forçoso anotar que o benefício da educação pede a base da escola.
Se você sofreu prejuízos materiais, recorde que, em muitas ocasiões, a perda do anel é a defesa do braço.
Se alguém lhe ofendeu a dignidade, olvide ressentimentos, ponderando que a criatura de bom senso jamais enfeitaria a própria apresentação com uma lata de lixo.
Se a impaciência lhe marca os gestos habituais, acalme-se, observando que os pequeninos desequilíbrios integram, por fim, as grandes perturbações.
Seja qual seja o seu problema, lembre-se de que toda mágoa é sombra destrutiva e de que sombra alguma consegue permanecer no coração que se acolhe ao trabalho, procurando servir.
CRÔNICA
Os dois semblantes
Por: Autoria desconhecida
Certa vez, ainda na Idade Média, sob a áurea das trevas, um grande artista, dentre tantos, foi escolhido para pintar um quadro a óleo que seria utilizado para ornamental uma igreja de Roma. A tela teria por tema toda a vida de Jesus Cristo.
Assim, durante meses a fio, e sem descanso, dedicou-se o pintor à execução do quadro. Quando, porém, faltava pouco para terminar, foi forçado a parar. É que faltavam dois modelos importantíssimos, justamente aqueles que deveriam representar o Menino Jesus e o Judas Iscariote. Rapidamente o artista pôs-se a procurar, pelas ruas, pessoas que pudessem personificar, plasticamente, os dois modelos.
Começou a busca em sua própria cidade. Percorreu todas as ruas, procurou em todos os bairros. Andou muito, viajou muito. Examinou, linha por linha, centenas de rostos de meninos e de homens, sem que nenhum deles apresentasse as características que exigia para os personagens de seu quadro. Foi então que retornando a sua terra natal, percorrendo novamente um velho bairro da cidade, viu um pequeno de doze anos, com semblante de rara beleza e extraordinária meiguice. Era justamente o que procurava – concluiu.
O pintor exultou de alegria. Enfim, poderia continuar seu trabalho. E, de imediato solicitou permissão aos pais do menino e pôs mãos à obra novamente.
Durante dias, e dias o garoto pousou pacientemente até que seus lindos traços fisionômicos passaram para a tela do pintor. Encerrada a pintura, satisfeito declarou:
- A beleza e a candura de sua alma estão refletidas em seu rosto.
Encerrada a etapa, o pintor então começou a fazer novas buscas, agora na esperança de encontrar quem lhe servisse de modelo para a imagem de Judas.
Novas caminhadas... Novas indagações... Novos semblantes em desfile... Mas ninguém satisfazia às exigências do artista. A bela obra paralisada aguardava o seu último personagem, para ser exposta aos olhares do público. E tudo indicava que tão cedo não seria terminada.
De fato os dias foram se escoando, os meses sucedendo-se um ao outro, os anos também se passaram e o quadro continuava no mesmo.
O pintor já desanimava, quando um dia, ao passar por um bar, pouco recomendável, viu aparecer à porta um pobre homem esfarrapado, magro, sentado ao balcão. Estava completamente embriagado. O pintor aproximou-se e condoído, estremeceu de horror e emoção. Aquela fisionomia ainda moça, porém marcada impiedosamente pelo vício, ajustava-se com precisão à sua tela inacabada! Encontrara, afinal, o seu Judas Iscariote.
- Venha comigo, que eu cuidarei de você – afirmou o pintor, que se pôs, dia e noite, a completar a tela.
E coisa estranha acontecia à medida que o trabalho avançava. O modelo, pouco a pouco, demonstrava desalentadora tristeza. O pintor percebia a transformação, mas nada comentava. Até que num dia, notando que lágrimas silenciosas deslizavam daqueles olhos encovados, interrompeu o trabalho e indagou, interessado:
- Meu filho, por que se aflige tanto? Em que lhe posso ajudar?
Desatando a chorar, o modelo cobriu o rosto com as mãos. Passados instantes, olhou para o pintor e, timidamente, falou:
- Não se lembra de mim? Há muitos anos, pousei para o senhor. Eu era o seu menino Jesus!
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