ESPECIAL!

Entrevista Exclusiva com o pensador político e escritor João Pereira Coutinho

Entrevista Exclusiva com o pensador político e escritor João Pereira Coutinho

Um dos mais importantes articulistas do pensamento político é o desta edição especial do Cultura!

Um dos mais importantes articulistas do pensamento político é o desta edição especial do Cultura!

Publicada há 1 mês

EDIÇÃO ESPECIAL - ANO IX - N.º 49

“SERÁ IMPOSSÍVEL, NO FUTURO, COMPREENDER O PASSADO E AS SUAS DIFERENÇAS”

João Pereira Coutinho, um dos mais importantes articulistas

do pensamento político em Portugal e no Brasil,

é o ilustre convidado desta edição especial do Cultura!.

Em entrevista exclusiva ao jornal,

o pensador e escritor refletiu 

sobre os obstáculos para uma séria compreensão

do discernimento político, discorrendo, inclusive, 

a respeito de como os avanços tecnológicos

e as conquistas culturais ajudam -

 para o bem e para o mal - 

a redesenhar esse cenário.

Para o jornalista e cientista político português João Pereira Coutinho, não se sabe ainda como manter a democracia liberal e, ao mesmo tempo, limitar o dano das facções virtuais

UM CONSERVADOR PARA ALÉM DAS CARICATURAS E DO CONFORMISMO DAS IDEIAS


Em 2018, o cientista político, escritor e jornalista João Pereira Coutinho concedeu ao caderno Cultura! uma excelente e agradável entrevista, como era de se esperar. Seis anos depois, direto de Portugal, dispôs-se a compartilhar mais uma vez sua simpatia e visão expressiva sobre temas políticos e as configurações socioculturais.

Coutinho é um dos colunistas mais lidos na Folha de S. Paulo. Dono de uma abordagem versátil, seus artigos dedicam-se a analisar relações de governo e Estado, liberdade individual e responsabilidades coletivas, além de história, artes, cinema, literatura etc., sempre com um humor refinado e uma inteligência envolvente.

Doutor em Ciência Política e Relações Internacionais, também é professor associado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa. Semelhante à Folha, mantém colunas relevantes nos periódicos portugueses Jornal do Amanhã e Sábado. É autor de livros fundamentais para se conhecer e entender o pensamento conservador e liberal: Vamos ao que Interessa (2015, Três Estrelas - coletânea de textos escritos para a Folha), Edmund Burke: A Virtude da Consistência (2021, Âyiné), Diário da República: Geringonças, Pandemias, Invasões (2022, D. Quixote) e As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários, que acaba de ser relançado nesse mês de abril, pela Almedina Brasil (ou Edições 70), tamanho sucesso obtido. Detalhe acerca desta reedição: ela agora vem acompanhada de um prefácio inédito, e, ainda, foi acrescida entre parênteses no título a palavra (Novamente), cuja razão o autor nos explica na entrevista. Mais necessário - e por isso exata decisão - que isso, impossível!

Mesmo que por e-mail, é sempre um prazer tê-lo como entrevistado. A maneira como Coutinho nos dedica atenção faz parecer que não há uma distância continental entre nós - e nem quanto ao conteúdo interagido.

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• Coutinho, no nosso papo de 2018, um dos assuntos iniciais tratava exatamente das “democracias virtuais” e de seus impactos eleitorais. Logo depois, o filósofo Byung-Chul Han, em seu livro Infocracia: Digitalização e A Crise da Democracia (Vozes, 2022), também abordou o tema. A pergunta é a seguinte, diante desses novos meios de comunicação, como discutir com seriedade a questão da liberdade individual (e eleitoral) frente à “tribalização” constante?

Boa pergunta, difícil resposta. Quando a democracia liberal foi pensada, o problema das “facções” já era uma preocupação. Como impedir que um grupo de homens pudesse actuar contra os interesses gerais da comunidade? James Madison, no Federalist, respondeu: não pela censura, não pela uniformidade de opiniões, mas deixando que as facções se multiplicassem e mutuamente se anulassem. Além disso, como os Estados Unidos eram uma realidade geográfica vastíssima, Madison acreditava que uma facção em New Jersey não contaminaria uma facção na Virginia, por exemplo. A distância salvava a República. Como é evidente, a internet elimina essa distância: uma facção a milhares de quilómetros desperta outra facção em segundos. Isso significa que ninguém sabe ainda como manter a democracia liberal e, ao mesmo tempo, limitar o dano das facções virtuais. Mas nossos filhos ou netos saberão - ou não.


"Sempre parti do pressuposto

de que o principal problema

das redes é o anonimato

• ...E você, no texto Mug Shot de Trump é um Simulacro de Ficção (Folha de S. Paulo, 28/08/2023), adiciona a esse cenário tribal - de apoiadores ou de adversários - a questão da caricatura política. Isso é demasiadamente preocupante, pois se antes já era um exercício crítico tentar separar a biografia de uma pessoa de sua produção (artística e/ou intelectual), como, agora, identificar o que é real e válido em cada uma dessas dimensões?

Tudo é espectáculo. Os situacionistas franceses, com Guy Debord à frente, profetizaram isso. A política é só mais um reality show entre vários reality shows. Os candidatos são como participantes de um Big Brother que devem entreter as massas, comovê-las, enfurecê-las, esperando os votos como recompensa. Mas cuidado: se isso era válido para o Trump do primeiro mandato, talvez não seja para o Trump do segundo. Ele quer vingança.


• Você também escreveu que “direita e esquerda ainda fazem sentido no mundo de hoje, mas em certas matérias elas simplesmente trocaram de lugar” (Folha de S. Paulo, 17/07/2023). Mesmo diante das “democracias virtuais” e das “caricaturas”?

Creio que sim. Isso é visível nos seus apoiantes. A classe trabalhadora - o “proletariado”, como diria um marxista - hoje vota à direita. Assim é nos Estados Unidos, na França - e até em Portugal, onde um partido de direita populista como o Chega ocupou o espaço do tradicional Partido Comunista. De igual forma, as elites - culturais, académicas, mas também económicas - votam à esquerda. Há um realinhamento impressionante.


• E o PL das Fake News (Projeto de Lei 2660 que regulamenta as redes sociais no Brasil)? O acirrado debate sobre se a lei representaria um cerceamento ou uma necessidade dos novos tempos não seria, de algum modo, uma discussão com certo ar de inutilidade, uma vez que as leis sempre terminam inevitavelmente, bem ou mal, deslocadas para os hábitos, para os costumes sociais?

Entendo a ansiedade com as redes sociais. Mas sempre parti do pressuposto de que o principal problema das redes é o anonimato. Se for possível identificar e responsabilizar quem comete crimes no mundo virtual, sou a favor da máxima liberdade e da máxima responsabilidade, exactamente como acontece no mundo real.


• No seu livro Edmund Burke – A Virtude da Consistência (Âyiné, 2021), um dos pontos que você traz à tona de forma muito clara é a questão da “conveniência política”. Partindo desse pressuposto, nesses anos, no Brasil, com muita frequência políticos, principalmente do lado de Bolsonaro, fizeram referência a autores conservadores, liberais, utilitaristas etc., distorcendo seus pensamentos. Nesse sentido, seria exagero dizer que não se trata apenas de uma leitura equivocada, mas, sobretudo, de uma também distorção do conceito “conveniência política”?

Foi um festival da ignorância. Aliás, resolvi republicar o meu As Ideias Conservadoras pela Almedina Brasil, reformulando o subtítulo para: (Novamente) Explicadas a Revolucionários e Reacionários precisamente para explicar outra vez a diferença entre um conservadorismo liberal e o reacionarismo primitivo do anterior governo Bolsonaro e seus “teóricos” e asseclas.


"Burke sabia que devemos

dar a Deus o que é de Deus,

mas a César o que é de César


• E se em vez de eles se dedicarem a tais leituras, que tal se começassem pelo filme Oppenheimer (2023), de Christopher Nolan (risos)?

Não funcionaria. Eles preferem um mundo a preto e branco.


• Ainda no livro, há uma passagem do próprio Burke que diz: “[A religião] deve ser suprema em relação às leis”. Quando li esse trecho, me veio logo à mente a postura de muitos evangélicos extremistas que, deturpando o pensamento sofisticado de Burke (não que eu acredite que eles o tenham lido), utilizam dessa máxima para se colocarem acima das leis e poderem cometer crimes. Como Burke veria essa atitude?

O que Burke quer dizer, porque escreve num contexto cristão, é que acima das leis dos homens está a lei natural que emana de Deus. Isso não significa que a lei natural deve reger os homens; significa o inverso - as leis dos homens não devem ferir a lei natural, embora sejam sempre uma criação do saeculum. Burke sabia que devemos dar a Deus o que é de Deus, mas a César o que é de César.


• No campo cultural, as editoras têm optado pela adaptação de obras (cortando termos, passagens etc.), desejando proteger o leitor, como se pretendessem redimensionar um livro para cada indivíduo. Não corremos com isso o risco de perdermos a compreensão sobre a própria ideia de diversidade?

Naturalmente que sim. E a consequência perversa disso é que será impossível, no futuro, compreender o passado e as suas diferenças.


• ...Complementando, o que restaria para as discussões e as provocações, que são os eixos centrais da arte?

George Orwell já respondeu a isso no 1984: nada.


• Enrique Tarrio, nascido na Flórida, porém de origem afro-cubana, encabeçou uma milícia supremacista branca no ataque ao Capitólio. Coutinho, se me permite parafrasear uma frase tua, pergunto: por que pessoas como Tarrio insistem em ficar “no lado errado das barricadas” dos interesses de muitas minorias que eles pretendem representar?

A delinquência não conhece fronteiras, etnias ou “raças”. Só precisa de um pretexto.


• Você vê alguma relação entre os movimentos pelo “lugar de fala” e pelo “identitarismo” com comportamentos semelhantes ao de Tarrio?

O identitarismo é um fenómeno transversal à nova esquerda e à nova direita. Isso significa que ambas são formas iliberais de pensar a política porque pressupõem o apagamento do indivíduo, da diferença (da verdadeira diferença), em nome de uma dissolução na tribo. É um retrocesso pré-moderno, quase medieval.


• E a Inteligência Artificial (IA)? Como tem recebido o tom “apocalíptico” preponderante nas vozes da maioria dos intelectuais?

Com uma mistura de divertimento e horror. O que está por trás desse tom “apocalíptico” é uma pergunta velha como o mundo: será que formas mais avançadas de inteligência serão também formas mais avançadas de violência? Os optimistas dirão que não. Mas olhando para a história humana, e sobretudo para a relação entre os seres mais inteligentes (nós) e a restante espécie animal, eu talvez não estivesse tão certo disso. No fundo, esse tom “apocalíptico” é a humanidade a olhar-se no espelho.


• Arriscaria alguns palpites acerca de quais desdobramentos a IA pode provocar no campo político ou artístico?

Creio que já escrevi sobre isso. No campo artístico, haverá necessariamente uma revalorização da autenticidade. Ver um pianista a tocar uma peça, ver um pintor a produzir um quadro, ver um escritor a compor um texto - isso serão formas gourmet de arte, distintas da massificação artificial. Na política, espero que decisões potencialmente fatais - armas nucleares, por exemplo - não sejam deixadas nas “mãos” das máquinas. Ao contrário do que se pensa, a humanidade só não se extinguiu num enfrentamento nuclear porque, pelo menos uma vez, houve um ser humano que, contra as “evidências”, desconfiou e não carregou no botão: estou a falar do russo Stanislav Petrov. Uma máquina nem hesitaria.


• Na entrevista anterior, finalizei perguntando se alguma vez tinha perdido o interesse por um autor que, na juventude, apreciava muito. Você respondeu que, “na adolescência, pensava que Henry Miller era um gênio” (risos). Reli recentemente seu livro Trópico de Câncer, e acabei concordando ainda mais contigo. Porventura, entre a entrevista de antes e a de agora, você se descobriu incapaz de reler outro autor com o apego de outrora?

Na literatura, não me lembro. No cinema, fácil: Oliver Stone.

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Fotos: Reproduções: Twitter / Arquivo Pessoal

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