Os governos costumam creditar parcela de seu insucesso ao que designam como “herança maldita”. Mas a pior herança tem origem lá atrás, ao correr do fluxo civilizatório. Como reconhecem alguns dos nossos cientistas sociais, entre eles Hélio Jaguaribe, o Brasil conseguiu, entre os anos 40 e 70, montar o mais moderno Estado do Terceiro Mundo, ainda que este Estado tenha sempre carregado uma elevada dose de cartorialismo e clientelismo.
Mas a verdade é que, depois de ter atingido níveis bons de funcionalidade, o Estado brasileiro conseguiu entrar num escuro túnel, deteriorado pelas pressões clientelistas exercidas pela classe política. Também é verdade que a modernização do Estado, que, nas últimas décadas, muito avançou em função do programa de privatizações e da tentativa de racionalização e saneamento de estruturas, poderia ter diminuído o volume e a intensidade dos jogos de interesse. Explica-se: o Estado menor – com a passagem de áreas para a iniciativa privada – telecomunicações, energia, mineração, estradas – restringiu os espaços de corrupção, e, consequentemente, passou a ganhar menor pressão de grupos interessados nos negócios estatais.
Mesmo assim, esse Estado menor tem sofrido pressões para novamente engordar, como estamos vendo nesse governo Lula III. E também não tem resistido aos ataques da cultura da propinagem, como a operação Lava Jato, de triste memória, revela. É o que se enxerga, aqui e ali, em flashes divulgados pela mídia.
O País avançou, e muito, no caminho da modernização institucional. Até 1930, tínhamos uma sociedade agrária, comandada por uma oligarquia rural, com o apoio de classes urbanas. Entre 30 e 60, o País se converteu em uma sociedade classe média, sob forte influência de uma burguesia industrial em ascensão. E, a partir dos anos 70, converteu-se em uma sociedade urbana, mantendo imensos contingentes fora das malhas de consumo. Infelizmente, as experiências do País com os planos para administrar a moeda, as engenhosas elaborações para conferir ao País a estabilidade monetária, meta atingida apenas com o Plano Real, não conseguiram desfazer os laços que ainda amarram o País ao passado. No Brasil, herdamos um conjunto de mazelas que desfiguram as funções essenciais do Estado, deslocando o poder, cuja soberania é do povo, para donos e senhores feudais. O chefe, é oportuno frisar, não é um delegado do povo, mas um gestor de negócios, não um mandatário.
O Estado, por cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, fica reduzido aos conflitos de seus membros graduados do estado-maior. Os remendos novos que se têm colocado sobre o pano velho de nossa cultura não têm, como se conseguido, como se esperava, melhorar a qualidade de vida institucional, a ponto de serem visíveis, nos espaços da administração pública, nas três esferas do Poder – Federal, Estadual e Municipal – as sequelas geradas pelos ismos antigos e atuais: o patrimonialismo, o familismo, o grupismo, o mandonismo, o fisiologismo, o cartorialismo, o egocentrismo, o corporativismo, e, ainda, o populismo, o vedetismo, o olimpismo (deuses do Olimpo), que vez ou outra, dão as caras. Esses ismos se projetam sobre a estrutura das instituições políticas e sociais.
O Estado brasileiro, ao longo dos últimos 100 anos, apenas ilustrou com a tinta da sofisticação os aparatos que o tornam burocrático, parasitário e incompetente. Ao longo das décadas, alastrou-se o processo de corrupção que torna frequentes e rotineiras as técnicas de cobrança de propinas e comissões nos contratos públicos.
O poder invisível, que opera nas entranhas do Estado, se alastra como metástase, corroendo o tecido institucional, a ponto de, em determinados lugares do território nacional, o braço da violência, como se constata com o PCC manobrando influência junto à empresas, passar a ditar normas e regras ao corpo social, desafiando a autoridade pública. É uma vergonha que ainda tenhamos de passar por esse vexame.
A nossa Constituição Federal, como ponto de confluência da pluralidade de interesses da sociedade, constitui uma abrangente colcha de retalhos, com seu detalhamento regulamentador, a pletora de visões cartoriais, que remontam às sesmarias coloniais e pontuada pela ausência de parâmetros reguladores. Não é à toa que, a toda hora, se evoque a questão da governabilidade, pautada pelas intensas negociações entre os Poderes Executivo e Legislativo e até com o Poder Judiciário.
A provisoriedade do sistema normativo toma o lugar da permanência, a demonstrar que, em nosso País, a lei acaba servindo de instrumento para cobrir as distorções geradas pela ausência de um planejamento de longo prazo, a exemplo do que acontece no campo dos tributos, entre os mais altos do planeta.
Reforma tributária? Para quê? Para manter o status quo? Reforma política? Ora, os parlamentares não querem atirar no próprio pé.
E assim, andando como caranguejo – para trás, para os lados e, às vezes, para frente, o Brasil caminha trôpego na estrada do desenvolvimento.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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