LITERATURA

Canções do coração literário

Canções do coração literário

‘Eu não acredito em alta literatura, baixa literatura ou qualquer coisa do tipo. O que eu aprendi foi que só existem dois tipos de música: aquela que você gosta e aquela que você não gosta.’

‘Eu não acredito em alta literatura, baixa literatura ou qualquer coisa do tipo. O que eu aprendi foi que só existem dois tipos de música: aquela que você gosta e aquela que você não gosta.’

Publicada há 7 anos

Por Jim Anotsu 


Arte. Lixo. Luxo. Essas palavras se confundem quando pensamos em literatura — e mais do que isso, elas mudam dependendo do livro e de quem fala. Hamlet pode muito bem ser um luxo para o professor de faculdade, mas um lixo para o jovem que está em casa num dia chuvoso. A menor das obras pode ser a arte de um e o embuste de outro. Sempre penso nisso quando me lembro de um caso em específico. 


Rebobinando a fita alguns anos, o leitor talvez se lembre de que o autor Yann Martel (A Vida de Pi) foi acusado de plagiar nosso querido Moacyr Scliar. Depois de idas e vindas Martel deu o braço a torcer, disse que foi inspirado por uma resenha que John Updike escreveu (Updike não escreveu resenha alguma) sobre o livro de um “lesser author” lá dos fundos da América do Sul. O mero fato de alguém pensar em Scliar como um “autor menor” já é engraçado por si só, mas o que chama a minha atenção é a divisão entre autor “menor” e “maior”. 


O meio literário sempre foi cheio de suas divisões, brigas de egos e espinhos — é como se a briga Blur e Oasis dos anos 1990 fosse eterna e constante. Você sempre terá aqueles que pregam a superioridade de um estilo literário ou de um autor X, arautos do apocalipse cultural… E do outro lado estão os leitores. As pessoas que realmente entram numa livraria, compram o livro e o leem — eles fazem isso por prazer, acredite ou não. Como alguém que rastejou pelos corredores de uma Faculdade de Letras por aí (Bacharelado em Literatura Inglesa), eu me lembro de como os professores costumavam falar sobre o que prestava ou não — Ah, os jovens de hoje leem Harry Potter, Stephen King é subliteratura, etc e etc. As mesmas opiniões engessadas, o mesmo cheiro embolorado que mais serve para afastar pessoas da leitura do que para atraí-las. E isso não vem de hoje… Basta lembrar que Charles Dickens (o maior criador de personagens em minha opinião, desculpe Shakespeare — embora Falstaff e Hamlet sozinhos sejam mais poderosos que Oliver Twist e Pip) era alvo de críticas em sua época e depois. Chamado de sentimentalista, populista, comunista e tudo que um detrator já pensou em usar como xingamento, Dickens foi o autor mais famoso de seu tempo e seus trabalhos nunca deixaram de ser impressos.


 O mesmo pode ser dito de Robert Louis Stevenson (autor de O Médico e o Monstro, A Ilha do Tesouro e Raptado). Até os dias de hoje muita gente considera Stevenson um mero autor de aventuras para garotos — odiado pela mesma Virginia Woolf e pelos modernistas que odiaram Dickens — ainda que autores como Jorge Luis Borges, Joseph Conrad, Nabokov, Brecht e Hemingway o admirassem. São casos assim que me fazem pensar: qual é a literatura que fica? Qual é a literatura que realmente toca as pessoas? Será que realmente existe essa linha divisória entre “Alta Literatura” e “Literatura Popular”? Por qual motivo H. P. Lovecraft era considerado baixa literatura alguns anos atrás, mas agora recebe uma edição cuidadosa e requintada da Library of America? Como Kazuo Ishiguro pode ser elogiado por um livro com dragões, gigantes e feitiços, mas um livro de Terry Pratchett será sempre um “livro de fantasia” — embora Pratchett seja tão engraçado quanto qualquer P. G. Wodehouse. Por qual motivo Pearl S. Buck recebeu um prêmio Nobel e muitos elogios, mas agora quase ninguém lê suas obras? Será que essa linha realmente existe para o leitor ou para criar uma sensação de divisa entre o ser humano comum e o leitor na torre de marfim? Eu não acredito em alta literatura, baixa literatura ou qualquer coisa do tipo. Eu cresci no mundo do punk rock, do heavy metal e do rap. 


O que eu aprendi ali foi que só existem dois tipos de música: aquela que você gosta e aquela que você não gosta. Ou como o Weezer canta no Red Album, as canções do coração. São as canções que nunca parecem erradas, como canta Rivers Cuomo:


“Estas são as canções do meu coração 

Elas nunca soam erradas 

E quando eu acordar, pelo amor de Deus 

Estas são as músicas que eu continuo a cantar.”


Eu penso a mesma coisa sobre literatura. Se ela for realmente importante, se ela tiver algo a dizer, ela não vai soar errada — independente do que os adultos embolorados digam. O meu braço é repleto de tatuagens literárias, o rosto de William Shakespeare ao lado de Onde Vivem os Monstros e de uma vaquinha sendo abduzida. Na minha pele essas coisas se aceitam e se respeitam muito bem. 


Esse é o problema com adultos, eles gostam de soar inteligentes, maduros e circunspectos. Rejeitam a Fanta Uva porque pessoas sérias só bebem vinho — mesmo que o vinho seja azedo, te deixe embriagado e te faça tirar as calças no meio da festa. Adultos têm essa mania de afastar tudo que é “legal porque é legal”, mesmo que isso traga mais felicidade. Precisam colocar tabelas, divisas, separações e trilhas que só os iniciados podem seguir. Eles tomam Shakespeare e dizem: “só gente como a gente pode tocar naquilo”. E afastam o leitor comum da oportunidade de conhecer grandes personagens e histórias, de rir com as piadas de Hamlet e chorar com o fim do príncipe da Dinamarca. Colocam uma teoria enorme por trás de tudo e afastam o leitor daquilo que é o objetivo de qualquer história: ser lida. Mas… Eu acho que o tempo sempre fala o que é de verdade e o que é de mentira. Dickens, Stevenson, Conan Doyle, Public Enemy, Shakespeare, Tupac Shakur, Star Wars, Harry Potter, Run The Jewels, Racionais MCs… O que é de verdade permanece. As canções do coração nunca parecem erradas. É o que diz a canção. 


* JIM ANOTSU, AUTOR DE 'RANI E O SINO DA DIVISÃO' (GUTENBERG), DENTRE OUTROS, É ESCRITOR

















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