CULTURA!
Lênin: Cem anos depois
Lênin: Cem anos depois
‘O capitalismo, como modelo econômico, ideologia, é um retumbante fracasso. Gerou miséria, duas guerras mundiais, exclusão e conflitos planetários que se arrastam até hoje. De erros, creio, os
‘O capitalismo, como modelo econômico, ideologia, é um retumbante fracasso. Gerou miséria, duas guerras mundiais, exclusão e conflitos planetários que se arrastam até hoje. De erros, creio, os
Por Zé Renato
O frio estava insuportável. Doíam-me os ossos. A vodka auxiliava suportá-lo. Aguardava em meio à multidão. O comício iniciar-se-ia em breve. Trótski já estava posicionado à esquerda do palanque, estrategicamente, para garantir a integridade do líder dos bolcheviques. Lênin começou a discursar. Falava da necessidade da adesão de policiais e militares à causa, na medida em que eram trabalhadores como os demais. O czar fora derrubado por Kerênski.
O passo seguinte era depô-lo, para o triunfo da Revolução Russa. Aconteceu. Dias depois fui recebido em audiência pelo novo líder da Revolução, o advogado Vladimir Ílitch Uliánov, conhecido como Lênin. Como estivesse montado no hipopótamo de Brás Cubas, corri um século. Foi quando Lênin concedeu-me entrevista, a fim de celebrar, agora, o centenário da Revolução.
A seguir, passo a reproduzir a conversa, realizada em meio a boas doses de vodka, uma música erudita de Prokófiev ao fundo. — Camarada Lênin, como avalia a Revolução após um século? — Começou com a pergunta mais difícil, camarada. No entanto, entendo que foi um processo natural e necessário para o amadurecimento do socialismo, como projeto, como ideologia e, acima de tudo, como crítica ao capitalismo. — Camarada Lênin, a Revolução, historicamente, demonstrou muitos problemas, no tocante à qualidade de vida e à garantia de liberdade. — Camarada, entenda que a fizemos em meio a inimigos internos e externos, com um inverno rigoroso, como pode sentir.
Acrescente-se o fato de sairmos derrotados e humilhados da Primeira Guerra Mundial. Tínhamos coragem e ideologia para efetuá-la. — Concordo inteiramente. Todavia, após seu colapso pessoal, no momento que se aguardava sua sucessão feita por Trótski, veio Stálin... — É verdade, o assassino sanguinário, psico e sociopata, tomou o poder em meio a um golpe. Exilou, perseguiu e assassinou Trótski e os principais líderes e intelectuais da Revolução, tanto os leninistas, quanto os trotskistas. Fechou o país para o mundo. Transformou-o numa ditadura feroz com o rótulo de socialista. Propagandeou o regime por meio da Educação, do Esporte e da indústria bélica. Era apenas um invólucro falso, uma estampa mentirosa. — Lênin, permita-me: se os Estados Unidos tivessem aceitado o plano do General Patton... — É verdade, a História seria outra. Não teríamos condições de enfrentá-los. — Camarada Lênin, por favor, quero mudar um pouco o rumo da conversa. Li recentemente que o Fórum de Davos, na Suíça, neste ano, discute o capitalismo, no sentido de repensá-lo — perdoe-me a hipérbole —, humanitariamente, ou seja: qualidade de vida, exclusão, potencialização absurda da miséria. Isto é, em alguma medida os próprios capitalistas estão a pensar acerca do monstro que gestaram. O que pensa a respeito? — Obrigado pela oportunidade.
Ainda que muitos propalem o “fracasso” do socialismo e da Revolução, é importante salientar que o capitalismo, como modelo econômico, ideologia, é um retumbante fracasso. Gerou miséria, duas guerras mundiais, exclusão e conflitos planetários que se arrastam até hoje, sem vias de solução. De erros, creio, os capitalistas entendem mais do que nós. — Concordo, Lênin. Entretanto, como avalia as críticas ao socialismo? — Camarada, veja Gorbachev. Quando assumiu, realizou uma faxina ideológica, política, econômica e cultural. Tinha a melhor das intenções. Finalmente colocar a Revolução nos trilhos. Ao combater a burocracia corrupta e parasitária do Partido, foi deposto pelos calhordas.
O resultado: perderam-se todas as conquistas da Revolução. Hoje a Rússia, antiga URSS, é um país que apresenta todos os problemas dos países vitimados pelo capitalismo. Em tempo: saliento que não significa o malogro do marxismo. Que, enquanto método de análise da realidade, continua eficientíssimo. Com ajustes contemporâneos, quero dizer, sem ignorar qualidade de vida e acima de tudo liberdade de expressão, resguarda a preocupação ética com o humano. Mantém o Humanismo fundamental à vida! — Concordo novamente. — Permita-me chamar a atenção para outro problema. Verifique a derrocada da chamada política neoliberal. Com a economia atrelada à fibra óptica e às bolsas de valores, o capitalismo deixou de ser produtivo. Tornou-se especulativo.
Além do desemprego, da explosão da miséria, da exclusão planetária já citada, lembro-lhe a degradação ambiental, o esgotamento dos recursos naturais. — Camarada Lênin, devo acrescentar: o uso da energia nuclear para fins bélicos é uma ameaça permanente. — Camarada, adicione um novo drama: a exacerbação do fundamentalismo. — A anarquia não seria, então, a melhor saída? — Camarada, você me deixa numa situação desconfortável. Minha vida foi calcada na defesa do socialismo. Quero crer que, numa versão humanizada, uma espécie de atualização do marxismo ainda seja viável. — Camarada Lênin, num ponto concordamos: esse maldito capitalismo não é possível! — É verdade, camarada! — Houve uma pausa. Lênin retomou. — Perdoe-me, estou a receber chamados para retornar aos Céus. — Lênin, é surpreendente ouvi-lo proferir tais palavras. Você está no Céu? — Camarada Nietzsche já conversou com você. Sei, é seu papel perguntar. Todavia, não estamos autorizados a falar sobre o além. Do odnogo dnya! — Até um dia, camarada Lênin. A janela da biblioteca estava aberta quando adormeci. A névoa úmida e gélida da madrugada, somadas às doses adicionais de vodka, fizeram-me acordar com um pouco de frio, muita ressaca e pensativo: será que o camarada Lênin tem razão? Zdravstvuyte!