A cena do Datena dando uma cadeirada no Pablo Marçal não me sai da cabeça.
José Saramago escreveu um ótimo conto intitulado “Cadeira”. A pequena e rica história faz parte da antologia “Objecto Quase”. Nela está a sagacidade intelectual e habilidades estilísticas do velho portuga.
Saramago narra a queda de um velho ditador de sua cadeira. Na verdade, é um retrato metafórico de um episódio real: a vez em que Salazar caiu de uma cadeira de lona e adquiriu uma trombose cerebral. Ele viria a morrer dois anos depois.
O conto é um exercício intelectual, uma autópsia do fim da ditadura portuguesa e do desencadeamento da “Revolução dos Cravos”, em 1974.
É como se a cadeira, para Saramago, esse quase objeto - porque ali se encontra algo que transcende seu tempo - e seus significados, embalados pela ficção literária, tornassem-se quase o personagem principal, o sujeito de tudo, exceto um mero objeto.
“Já de perfeita se apelidaria a cadeira que está a cair. Porém, mudam-se os tempos, mudam-se vontades e qualidades, o que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem” (Obrigado, Saramago!).
O episódio do Datena acertando a cadeira em Pablo Marçal me leva, ainda, a outro tópico, discutido pelos autores Norman Mailer (que já dispensou apresentações, hoje anda meio esquecido) e seu filho John Buffalo Mailer.
Em 2006, foi publicado o livro “O Grande Vazio”, um apanhado de diálogos e discussões que os dois mantiveram sobre política, sexo, Deus, boxe, moral, mito etc. São pequenos textos (ou capítulos) cuja fórmula é simples: tornar questões turbulentas claras e leves. No capítulo “Política Terapêutica”, Mailer (o pai) é certeiro e direto sem a ajuda dos clichês - da época, claro, pois, infelizmente, nos tempos atuais, os clichês são tão consoladores para a maioria dos eleitores que é quase impossível não verificar isso sem certa perplexidade. Explico.
Datena, longe da TV, tenta manter a postura e a autoridade de voz de comando usufruída pelo jornalista em seu programa; ali, evidente, ele é o senhor do “showrnalismo”. À vontade no seu noticiário, fala sem rodeios, emite opiniões e, inclusive, dá broncas na equipe. O clichê é óbvio, se na TV não há quem o enfrente, nem o desminta ou invalide suas sentenças, nos debates não ocorre o mesmo. Trocando em miúdos, Datena até traz consigo a postura presunçosa do apresentador, mas, sem a autoridade para lhe confirmar a antiga força inquestionável, comete a impostura arrogante (equivocada) dos agentes midiáticos.
Pablo Marçal, que de humilde não tem nada, pratica a natureza do outsider: pegando carona (também equivocada) no estilo Bolsonaro de ser, surge como o sujeito destemido e que veio para acabar com a velha política. Por si só, essa já é uma velha retórica – e, mais uma vez, um clichê barato. Por quê? A resposta é cristalina.
Como sucede com regularidade na História, e nas sábias palavras de Mailer (pai), um protesto que pretende mudar o sistema pode, às vezes, apenas estar confirmando o sistema.
Há um fato recente que ajuda a contextualizar essa tese. Segundo algumas mentes brilhantes, as cobranças irredutíveis e perseguições incansáveis do politicamente correto sufocaram suas próprias intenções; o radicalismo desse comportamento trouxe à tona políticos radicais para, de forma proverbial, combater essa turminha usando de iguais métodos irredutíveis e incansáveis quanto a cobranças e perseguições.
Para Mailer (pai), todo protesto acaba tendo o resultado oposto ao que é esperado porque, muitas vezes, seus efeitos acabam distorcendo e sufocando suas motivações originais.
Como nos lembra Saramago, “mudam-se os tempos, mudam-se vontades...”. A cadeira sempre foi símbolo de poder. A cadeirada que Datena aplicou em Marçal é a transferência desse poder simbólico para outro polo.
Os eleitores (não todos, ao contrário do que se calculava) confinados na ideologia de Marçal provaram de um prazer imenso; não pela cadeirada em si, mas pela suposta fraqueza demonstrada por Datena longe de sua zona de conforto: sem paridade para as convicções e desejos intensos e desenfreados em prol de mudanças.
Na outra ponta, os que não suportam o jeito insolente de Marçal vibraram com a agressão. Enfim, fecha-se um ciclo... e ele não obteve os efeitos desejados.
Sim, sim, a cadeira, em seu silêncio duro e dirigido, teve uma função terapêutica para os dois lados. É o gozo freudiano.
Pela alegoria da cadeira, tanto Datena quanto Marçal preconizaram o óbvio ensinado por Mailer (pai): “as nuances irracionais de alguma ortodoxia é, com frequência, inimiga de outra ortodoxia”.
E eu acrescentaria: o julgamento ortodoxo baseado no pior de seu tempo termina por gerar uma nova ortodoxia semelhante (para dizer o mínimo) - em razão da ignorância convencional, que jamais desconfia de si mesma.
Gil Piva
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