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Talvez o leitor esteja se perguntando o que Mario Vargas Llosa tem a ver com Mira Estrela; ou, antes, “quem diabos é esse tal de Llosa?”.
Mario Vargas Llosa foi o mais famoso escritor peruano. E um dos mais importantes romancistas da América Latina, figurando, inclusive, entre os consagrados autores mundiais. Em 2010, ganhou o Nobel. Sem dúvida era excepcional. Se você nunca leu um de seus livros (os últimos não contam), só resta lamentar.
Parafraseando o próprio Llosa, estou respondendo com atraso ao seu chamado. Falecido em abril deste ano, ele é corretamente descrito como o “último gigante da geração dourada da literatura latino-americana”.
Llosa estava entre os meus cinco escritores contemporâneos favoritos. Por ordem de falecimento, García Márquez, José Saramago, Philip Roth e Ismail Kadaré. Os dois primeiros também foram consagrados com o Nobel. Nada mais que justo. Roth e Kadaré não receberam o prêmio; eles não precisavam, era a Academia Sueca que precisava deles.
Llosa foi o último desse grupo a me abandonar. Sua morte repercutiu de tal modo que fiz questão de contar, nos dois principais periódicos do país, quantas matérias foram publicadas a seu respeito. Na Folha de S. P. foram 9; no Estadão, 12. Isso em menos de 48 horas. Talvez apenas Saramago tenha conseguido no Brasil feito semelhante.
Já o albanês Kadaré, romancista de igual envergadura, beirando o desconhecimento por aqui, morreu em julho do ano passado e conquistou não mais que uma nota na Folha e uma singela – para não dizer pobre – matéria no Estadão. Isso se dá por inúmeras razões que não vêm ao caso.
E onde Mira Estrela entra nessa história?
Llosa, até certa idade, era um forte esquerdista; mais tarde, tornou-se um coeso liberal; contudo, à medida que envelhecia, suas ideias envelheciam junto: contrariou (inconscientemente, quem sabe) os próprios liberais e conservadores que leu e defendeu, e acabou como um direitista radical. Nem tanto. Estou a exagerar.
A título de exemplo, cito o seguinte episódio: há alguns dias, em Mira Estrela, presenciei reações e contrarreações acerca de uma proposta de reestruturação salarial.
A realidade é elástica. Se ela não nos ensina, pelo menos nos lembra de que, na democracia, uma oposição política funciona, quase sempre, como a negação do outro.
Para além das brutalidades ideológicas, é tão compreensiva a proposta de aumento salarial dos funcionários quanto é essencialmente justa a indignação da população e o posicionamento também contrário dos vereadores.
Em Mira Estrela, a elasticidade da realidade democrática não seria diferente da proposta pelos pensadores de Llosa. Eis o legado que deixou em seu livro O Chamado da Tribo: grandes pensadores para o nosso tempo.
Mesmo mediante o espetáculo das redes sociais – que não deixa de pertencer à “sociedade do espetáculo” da qual falou Llosa em outra obra –, os fundamentos da liberdade individual devem ser mantidos.
O que a tribo de Llosa – e o próprio Llosa – nos oferece é a noção equilibrada de que as ideias (políticas) pautam as relações de interesses e de ação na sociedade.
Por isso a postura de quem opina e debate precisa ser elástica, próxima à realidade, na medida certa da realidade.
O que importa aqui, e nisso Llosa foi quase irretocável, é entender que intelectuais como Adam Smith, Hayek, Berlin, entre outros, demonstram que nossas meditações melhor escapam dos equívocos e abusos de nossas motivações se respeitarem a modernidade e suas características adaptativas.
Não nos esqueçamos: a experiência crítica em sociedade, escreveu Llosa, é um feito estrondoso, mas, em contrapartida, lança ao homem “a responsabilidade individual”.
Quem quiser conhecer a obra de Vargas Llosa, recomendo Tia Julia e o escrevinhador e A guerra do fim do mundo. São livros magistrais.
P.S.: Um dia escreverei sobre Kadaré. Com orgulho.
Gil Piva
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