OPINIÃO
Artigo: De vez em quando, meus amigos esperam que meu pessimismo os acuda
Artigo: De vez em quando, meus amigos esperam que meu pessimismo os acuda
Se antes éramos mais felizes, por que o presente evidencia o oposto?
Se antes éramos mais felizes, por que o presente evidencia o oposto?
Quando eu tinha 19 anos, um amigo mais velho me deu em mãos uma pequena obra filosófica. Era um rudimentar xérox, com as folhas amassadas e se soltando. Anos antes, alguém lhe havia entregado, como uma maldição hereditária, com os dizeres: “Leia! Leia de perto, porém não em demasia.” Passava-se o livro adiante, repetia-se o aviso (ou seria um enigma?), temperando as inseguranças das minhas espinhas.
Este amigo teve papel importantíssimo na minha formação literária. Graças a ele, descobri outros livros inusitados; suas indicações (e presentes!) me fizeram perceber que a cultura literária é a somatória de livros e anos. Nem sempre nessa ordem. Desconheço seu paradeiro. Teríamos uma infinidade de coisas para conversar.
O perigoso livro que ele me pedia para ler - aos desapiedados 19 anos - era o Breviário de Decomposição, de Emil Cioran. Deixar aquelas páginas aos descuidos da minha versão pueril, carregada de vazio existencial, seria visto por muitos como um ato imprudente.
Sobrevivi ao livro. Claro que, jovem, não consegui absorver toda a reflexão que Cioran propunha, embora não seja das mais difíceis: faltava-me a maturidade que alarga não apenas a compreensão textual, mas o significado das vivências.
Cioran é um filósofo de puro pessimismo. Isso mesmo, leitor, o pessimismo em estado puro; ao contrário do que pensa a maioria, o desencanto e a desesperança podem, sim, ser a voz que às vezes falta para a razão.
O livro havia me fascinado. Na inconsistência do ocaso, notei que o lia a cada 10 anos, mais ou menos. E Cioran tinha meu apreço, pois, na sequência, vieram outras leituras suas: Silogismos da Amargura, História e Utopia, Nos Cumes do Desespero e Exercícios de Admiração.
Com seu pensamento trágico da “decomposição”, Cioran analisa, por meio de ensaios curtos, com ceticismo a existência. Sua premissa de mergulhar na desmistificação das nossas futilidades sagradas foi se desenvolvendo ao longo de sua obra. A concepção cioranesca nasce de suas crises existenciais e de suas intenções de cometer suicídio. Ele não cansa de destacar que foram a literatura e a experiência filosófica que o salvaram. Nos Cumes do Desespero, seu testamento desse período sombrio, as ilusões (ou desilusões) insones ganham força e se traduzem em lágrimas poéticas.
Mas a filosofia de Cioran não se resume a ausências, amarguras, o nada ou a transcendência. Em Exercícios de Admiração, ele vê a essência da humanidade e reconhece significado nela - ainda que pelos seus fatalismos.
Com frequência, amigos me abordam para falar sobre como o ser humano piorou, ética e moralmente. Com igual rapidez, também tentam me convencer de como o mundo antigo era melhor. Eles conhecem meu pessimismo. Me encurralam de propósito com essas indagações, curiosos para entender como minhas descrenças são menos duras com as pessoas de hoje do que com as de ontem. No fundo, desejam que meu pessimismo os acuda. Que eles me desculpem, a resposta é simples: até meu desalento sabe respeitar os fatos e seus traços distintivos.
Nas ruínas de uma sociedade diluída pelos novos costumes virtuais - descrito por Bauman -, as duas convicções atravessam o óbvio das suas (e das nossas) contradições. Se antes éramos mais felizes, por que o presente evidencia o oposto? O agora nos mostra todos se maravilhando orgulhosos por conquistas que eram insignificantes na época de nossos pais e avôs. Época que adoramos e adoçamos em nosso imaginário afetivo.
É estranho observar o excesso de alegria no Instagram, enquanto difamam o contemporâneo como se fosse o (literal) apocalipse bíblico. Tanto a felicidade quanto a tristeza atuais não são anônimas nem privadas. Elas acontecem em público, a pretexto de exibição – e, como eu disse, ocorrem sinalizando a confirmação da própria vaidade, jamais do silêncio. A ideia da indiferença alheia é, por si só, mais assustadora que o fim dos tempos.
Se a felicidade e a tristeza estão em semelhante grau de espetáculo público, como pensar a História, suas diferenças, suas ações e inações? Cioran nos ensina que “todas as verdades estão contra nós”. Por isso é necessário ler sua obra de perto. Pelo mesmo motivo não se deve grudá-la aos olhos: as conclusões, quando não são desejadas, imperam desastrosas.
Cioran está longe de ser uma maldição. Sua linguagem não é unidimensional. Seus aforismos percorrem inúmeras direções de uma única paisagem: a condição desesperadora da qual, em alguns momentos da vida, não escapamos. Nesse sentido, seu texto é um território áspero porque é apurado pelas dores que habitam em nós. E é a exata sensação de insuficiência que sentimos no peito enquanto o lemos que nos humaniza.
Gil Piva
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