
José Saramago foi o escritor que mais li e reli. Numa fase da minha vida, confesso, eu quase não tinha olhos para outro escritor – e tampouco espaço para outro assunto. Digo isso, leitor, com um misto de vergonha e orgulho. Vergonha pelo óbvio motivo: quando somos repetitivos e pouco flexíveis, ficamos cansativos para quem convive conosco. E orgulho por uma razão mais óbvia: fui um leitor saramaguiano dedicado, interessado e crítico. Uma das melhores frases que já ouvi sobre isso vem de um grande amigo: “Seja admirador sem ser tiete”. Mil perdões, meu querido, às vezes a tietagem é incontrolável. Tanto é que cheguei a pensar que um dia apertaria a mão do português.
As críticas frequentes de Saramago à religião e ao capitalismo nunca me impediram de apreciar sua obra. Em grande medida, concordava com ele; e o tratamento que eu dava aos pontos dos quais discordava representava, naturalmente, um exercício: é uma arte hoje em dia muito incomum, saber admirar ora o autor, ora sua obra. Recomendo.
Até onde sei, Saramago foi o último grande autor a arrebanhar multidões por onde passava. Há explicações para isso. Seus livros – e suas falas – dilaceravam o homem e a sociedade de modo universal. A universalidade com que ele abordava todos os problemas possíveis; ou seja, a maioria de seus leitores não era ateia nem comunista, e ainda assim se rendiam à sua narrativa profunda e luminosa. Dito dessa forma, sei que a explicação soa genérica, possível de ser atribuída a qualquer livro ou autor. Não é. Seu estilo narrativo está sempre a serviço da reflexão proposta e da interpretação aguardada.
É o que diz a professora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés, em seu livro As artemages de Saramago (Companhia das Letras, 2022). Para ela, “a evolução do estilo de Saramago é correlata à evolução de sua temática e, em decorrência, da escolha de gênero.” Podem-se atribuir ao estilo todas as observações já feitas: um escritor de prosa social, lírica, com fluxo de consciência e psicologia dos personagens, um escritor engajado, um pensador-autor, ou, marcando o tom permanente de um tipo de oralidade em seus livros, um conjunto de sentidos alegóricos que ganha vida, experimentando uma “sabedoria fabulista” – um exímio contador de histórias cuja única culpa é a de contaminar sua literatura com clareza e elegância.
Eis que a editora Caminho, companheira de longa data de Saramago, está preparando uma edição especial de A Noite – uma peça teatral que marcou a relação entre autor e editora, em 1979.
A Noite foi a primeira peça teatral de Saramago. Baseada em acontecimentos históricos reais, a ação dramática explora, com ironia, os efeitos do fim do regime ditatorial português. A Revolução dos Cravos, que encerraria este período se instaura na noite de 24 para 25 de abril de 1974, a curtos passos e sem barulho. Tudo ocorre dentro de uma redação de jornal. Para uma peça, uma noite pode parecer pouco tempo para o desenvolvimento de uma época; para a História, os questionamentos do livro se aproximam de uma indeterminação temporal. Quando cenários autoritários se movimentam e subordinam a liberdade de expressão, nem os anos futuros dão conta de estabelecer toda a compreensão necessária.
Saramago sabia disso. Mediando os bastidores atormentados de um jornal, em meio a temores pressentidos, com os exatos contornos de subserviência da própria redação e de seus representantes, o jornal – por causa de sua autocensura – podia fechar suas portas sozinho, independentemente das forças militares. Não por acaso, o título oferece a ideia de sussurros que percorrem todo o cenário em contraste com a sensação de medo e alívio que vai se formando diante das relações de poder que arrastam a censura e da iminente esperança repousada na surdina.
Em 2025, as celebrações em torno do Nobel de Saramago continuam em alta. É fácil saber o porquê. Há 27 anos, um escritor de língua portuguesa ganhava o tão prestigiado prêmio. Um escritor de língua portuguesa tão lido quanto prestigiado pela crítica. Não confundir, nessa bagagem, a fama de Saramago com os aspectos de celebridade, facilmente desfeitos. Sua obra era o testemunho de um escritor célebre – um feito que não se repetirá com facilidade.
Perrone-Moisés enfatiza o fato de a literatura cética de Saramago ser superada pela própria beleza de sua obra. A Noite simboliza ressonâncias genuínas que engasgam e falham, às vezes, diante de inclinações políticas antidemocráticas, mas que, pelos mesmos motivos, reverberam. É como se Saramago declarasse na fala bem elaborada de cada personagem a aventura de se ter voz.
Gil Piva
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