Por O. A. Secatto
Minha Laura soltou seu primeiro agudo sopranesco neste mundo às 20h38 do dia 7 de março de 2017. A pediatra deu a volta na mesa cirúrgica e trouxe a Laura até a Bella, que encostou o nariz nela e a beijou. Só então foi que a Laura parou de cantar. Quando a pediatra a tirou da Bella e pediu que eu a acompanhasse, a Laura voltou a cantar. E alto. No berçário, foi pesada, medida e limpa. Só parou com a ópera quando segurou meu dedo e ouviu minha voz. Ah, não há palavra em língua humana que possa descrever a sensação de pai quando a Laura abriu os olhos pela primeira vez, ali no berçário, segurando meu dedo, olhou para mim e sorriu.
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Joelho. Todo recém-nascido tem cara de joelho. A não ser que seja nosso. Nesse caso, com toda a imparcialidade inerente ao homem, vemos todos os traços ancestrais ali manifestados. Talvez seja só impressão minha. Na verdade, nunca pensei que veria minha orelha e meu nariz em outra pessoa em versão miniatura... Mas deve ser alguma ilusão sugestiva. A Laura, apesar de se parecer comigo, é linda!
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Bendito. Na minha casa minha situação de minoria foi agravada. Se antes eram a Bella e a Khera contra mim, a elas agora somou-se a Laura. Que tem falado alto. Tanto que é ela que define a hora que saímos e voltamos para casa. A propósito, para aqueles que se preocuparam com a reação — e o ciúme — da Khera, uma informação: ela agora deita sempre perto da Laura, não de mim. Perdi a preferência. Não sou mais caninamente VIP.
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War. Também perdi o banheiro, que agora é da Laura; perdi a poltrona na sala, que agora é da Bella; o um terço de cama que tinha — a Bella ocupava os dois terços restantes — agora passou para apenas um quarto. Meu pequeno território está sendo ocupado. Meu último refúgio continua meu escritório. Não sei até quando.
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Musiquinhas. Tem hora que o colo não é suficiente e o balanço não basta. É aí que entram as musiquinhas. Fica a dica. E eu, nesses poucos dias, já cantei muitas para a Laura: Mozart, Rossini, Beethoven, Bellini, Vivaldi, Puccini, Verdi, Mussórgski, Tchaikóvski. Até Wagner e Orff. (Confesso que estes dois acabaram-na deixando um tanto agitada. Afinal, “Estuans Interius”, da Carmina Burana, de Orff, e trechos de baixo-barítono de Die Walküre, de Wagner, não são exatamente canções de ninar.) Além dos solfejos inventados e já perdidos e de outras cujas letras foram adaptadas a cada situação, como: “Tropa de Elite, osso duro de roer! Pega um, pega geral, também vai pegar nenê!” Nem sempre ela dorme.
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Diálogos esparsos. (Peço licença ao Vittorio Cecchinelli para usar a expressão por ele consagrada.) Meu pai para a Laura: — Ô meu ourinho... A Khera: — Mas “meu ourinho” não era eu?
Meu pai: — Vocês duas, meu ourinho, vocês duas.
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Eu para a Laura: — Você é mais delícia do mundo! A Khera: — Mas “mais delícia do mundo” não era eu? Eu: — Vocês duas, minha delícia, vocês duas.
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Visita: — Nossa, ela é a sua cara, Secatto! Eu: — Mas, se Deus quiser, quando crescer, ela muda.
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Logística de guerra. Trocar de cômodo na casa exige planejamento. Tá tudo aí? Pega isso, pega aquilo, cadê a fralda?, cadê a chupeta?, cadê...?, trouxe a meia? Isso em ambiente fechado e pretensamente controlado. Imagine para sair de casa.
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Manual. Filho não vem com manual, embora às vezes perguntemos em desespero: “Onde fica o botão que desliga?!” Em verdade, é bem simples. Todo nenê apenas tem três modos (que são cíclicos): “mama”, “dorme” e “chora”. Entre eles, nos intervalos, há os submodos: “cocô” e “xixi” (com todas as combinações possíveis acontecendo a cada meia hora). No modo “chora”, você quer que ele durma. Então, quando está no modo “dorme”, você tem rompantes de dúvida instintiva seguidos de apavoro: “Será que ele está respirando?!” No final, você sempre perde o sono. Eu, por exemplo, passo o dedo no nariz ou na orelha até ela se mexer no berço. (Tenho certeza de que, após minhas noites mal dormidas, ca
da bocejo dela no meu colo é uma provocação. Cadê aquele cadelo que falava “bem dormido! bem dormido!” numa hora dessas?)
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Fã-clube. Esses dias estava cantando Nessun Dorma! no banheiro e, quando saí, minha Bella pediu para que continuasse. Ela estava gravando a reação da Laura, que abria os olhos, franzia a testa e mexia a boca, prestando atenção na ária de Puccini, algo do tipo “Vixe!”. Nem acredito que alguém finalmente me atura cantando. E gosta. Eu acho.
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Quando soubemos da gravidez, iniciamos a providência para receber o fruto do ventre. O quarto que continha minha mobília de solteiro — cama e guarda-roupa — precisava de adaptações. Fizemos a reforma. Então, pintado, novo em folha, estava vazio. Lá se instalou um eco. Até divertia um pouco para o canto: falseava uma acústica operística. Mas estava vazio. Até ganhou alguns móveis de bebê. Mas estava vazio. A Laura preencheu o vazio. E acabou com o eco. Se ela vai cantar ópera comigo? Como dizia minha tia Wilma, só por Deus, só por Deus...