“João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde menino, passou, sem sentir, pela infância. Acostumou-se a pouco pão e muito suor. Na seca comia macambira, bebia o suco do xique-xique, passava fome. Quando não podia mais, rezava. Quando a reza não dava jeito, ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado. Derrotado. Cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva, pegava o caminho de volta, animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra, dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé. Peço-lhe, muito simplesmente, que não o condene”.
O trecho acima refere-se à fala da atriz Fernanda Montenegro ao interpretar Nossa Senhora, mãe de Jesus, em cena do filme “O Auto da Compadecida”, inspirado na peça teatral de mesmo nome do genial escritor paraibano Ariano Suassuna. Perante seu filho Jesus, na condição de juiz, e do demônio, de advogado de acusação, Nossa Senhora defende, em um tribunal situado entre “o céu e o inferno”, o pobre sertanejo nordestino chamado João Grilo - personagem interpretado pelo ator Matheus Nachtergaele. Em um discurso emocionante, a mãe de Jesus resume a vida dura de João Grilo, que simboliza o sofrimento do nordestino frente às consequências da seca no sertão.
Seca que sempre castigou o agreste e o sertão do nordeste brasileiro, forçando milhares de pessoas a migrarem para outras regiões em busca de melhores condições de vida. Porém, quem ganhou com esse evento demográfico foi o país, pois com seu trabalho duro, o retirante nordestino colaborou, e muito, com o desenvolvimento do Brasil.
Dessa forma, na condição de migrante, os nordestinos participaram de importantes ciclos econômicos que ocorreram no país. Inicialmente, compuseram a grande massa de trabalhadores que impulsionou os dois ciclos da borracha na região Norte, em 1879 e durante a Segunda Guerra Mundial, promovendo o desenvolvimento da região Amazônica. Posteriormente, os nordestinos colaboraram com a industrialização da região Sudeste, sobretudo nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos 1950 e 1970. Além disso, eles foram importantes no processo de expansão das fronteiras agrícolas da região Centro-Oeste e, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados no livro intitulado “Veredas de Brasília: As Expedições Geográficas em Busca de um Sonho”, em termos regionais, os nordestinos foram os principais candangos (44%), como eram chamados os operários que construíram Brasília/DF.
Na esteira dessa saga, alguns ilustres migrantes nordestinos se destacaram e alcançaram sucesso no cenário nacional. É o caso da paraibana Luíza Erundina, primeira mulher eleita prefeita da maior cidade brasileira - São Paulo; o paraibano Assis Chateaubriand, cofundador, na capital de São Paulo, do Museu de Arte Moderna (MAM), além de ser o responsável pela chegada da televisão ao país, quando fundou, em 1950, a primeira emissora brasileira - a TV Tupi; o empresário pernambucano José Ermírio de Moraes, que fundou um dos maiores conglomerados industriais da América Latina – o Grupo Votorantim; e o militar cearense Casimiro Montenegro Filho, que fundou, em São José dos Campos/SP, o famoso Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Departamento de Ciência e Tecnologia da Aeronáutica (CTA), embrião da Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A (Embraer) - um conglomerado transnacional brasileiro fabricante de aviões comerciais, executivos, agrícolas e militares, considerado um dos maiores do mundo no setor.
De qualquer forma, anônimo ou famoso, na vida de um típico retirante nordestino, que em sua terra natal sofreu com as agruras da seca, pode ter faltado o pão, a chuva e as condições dignas de sobrevivência, mas nunca faltaram, em seus braços, a força do trabalho e, em seu coração, a esperança em dias melhores, mesmo que em outros lugares, distante do seu amado sertão, e, à semelhança do personagem João Grilo, na obra “O Auto da Compadecida”, sempre agradeceu a Deus por ser um sertanejo fortalecido em sua coragem e fé ao encarar os duros obstáculos encontrados pelo caminho. Por isso, respeitemos, por favor, o migrante nordestino!