Por Bruno Anselmi Matangrano
A Caverna de Cristal, publicado originalmente em 1970 e recém relançado no Brasil pela Editora Cavaleiro Negro,é o primeiro volume da série Merlin, da autora inglesa Mary Stewart, falecida em 2014, dois anos antes de completar 100 anos. Sua saga narra uma possível versão, embasada historicamente, das lendas conhecidas como Ciclo Arturiano, situando-as na segunda metade do século V, em torno de 470 d.C. Neste primeiro volume, o leitor é apresentado a um Merlin totalmente diferente de sua figura habitual. Em vez de encontrar um sábio idoso de longa barba branca, portando um cajado, depara-se com um garotinho inteligente e desconfiado, de cabelos e olhos pretos e estrutura franzina, como comum ao povo celta britânico. Merlin é filho bastardo da filha do Rei de Gales do Sul, um pequenino reino que responde a um suserano conhecido como Grande Rei. Sobre o pai de Merlin, no entanto, nada se sabe, embora muitos acreditem que o garoto é cria de um demônio, o que levanta a suspeita de alguns, suscita o respeito de outros e lhe traz inúmeros problemas.
Em meio a intrigas de corte, onde em diversos momentos sua cabeça está a prêmio, o jovem Merlin conhece Galapas, uma espécie de mago e curandeiro, habitante de uma gruta escondida, aos fundos da qual se encontra a Caverna de Cristal do título do livro. Galapas, então, aceita o menino como aprendiz, identificando em suas habilidades certo poder mediúnico conhecido como Visão, o qual ele mesmo parece deter, como se conhecesse de antemão o destino e as origens de Merlin.
Passado algum tempo, a vida de Merlin sofre uma reviravolta quando, após a morte de seu avô, um tio maligno assume o trono de Gales, obrigando-o a fugir de seu próprio lar. Em meio a muitas aventuras e desventuras, Merlin acaba chegando à Pequena Bretanha, região localizada ao norte da atual França, onde encontra amigos e descobre sua verdadeira identidade, auxiliando então ativamente no processo de unificação dos reinos da Grã-Bretanha, em uma única pátria, a Inglaterra, e, mais do que isso, ajudando a trazer ao mundo aquele que seria o mais lendário de todos os reis, o Rei Artur.
Talvez o elemento mais interessante da história de Mary Stewart seja a ideia de deslocar Merlin para a figura de um menino, em vez de associá-lo à personagem-tipo do sábio-guia que conduz e auxilia o herói. Figura que, na fantasia moderna, se desdobrou em tantas outras, como Gandalf, de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, Aslam, de As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, Macros, dos livros que compõem A Saga do Mago, de Raymond E. Feist, Alannon, da recém-adaptada série As Crônicas de Shannara, de Terry Brooks, ou ainda Temístocles, personagem que brinca inclusive com essa semelhança, admitindo ter tido outros nomes em outros lugares, tais como Gandalf e Merlin, nos livros da injustamente esquecida trilogia Märchenmond, de Wolfgang e HeikeHohlbein, dentre tantos outros.
Segundo a tradição medieval, perpetuada por antigos historiadores como Geoffrey de Monmouth, seguida pelos romances de cavalaria de Chrétien de Troyes, e consagrada pelas narrativas de Sir Thomas Malory (1405-1471) publicadas em 1485 nos volumes de A Morte d’Arture retomadas por T. H. White (1906-1964) na saga O Único e Eterno Rei (1938-1977), Merlin é um mago poderoso, grande aliado e mentor do Rei Artur. Dentre suas muitas habilidades, está a clarividência, o que lhe possibilita se antecipar a acontecimentos ainda por vir. Talvez devido a esta capacidade poderosa, Merlin normalmente foi relegado a um papel coadjuvante, aparecendo nas obras do Ciclo Arturiano como conselheiro e apoio de outros heróis. Mas como seria se ele pudesse protagonizar uma história própria? Faria sentido contar uma trama narrada por quem sabe tudo de antemão não por já ter vivido cada acontecimento, mas sim por tê-los previsto? É a este desafio que Mary Stewart se lança em A Caverna de Cristal.
Obviamente, seu Merlin não é tão poderoso (do ponto de vista místico) quanto seus antecedentes, posto que tente criar um mago realista dentro dos limites do imaginário da época, ainda que cercado por situações sobrenaturais, mas este jovem Merlin é também poderoso politicamente, já que inteligente, observador e inventivo, sendo não apenas mago, mas também engenheiro e curandeiro. Mesmo assim, o Merlin de Stewart é sim capaz de prever acontecimentos ou de ter conhecimento em tempo real de acontecimentos que se desenrolam a quilômetros de distância; por conta disso, torna-se um narrador muito diferente e interessante, analisando e interpretando cada fato ou acontecimento e fazendo digressões profundas e filosóficas.
Antecipando-se a livros com grande preocupação histórica, como As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, publicado em 1983 (que, mesmo tendo este cuidado histórico, é essencialmente uma obra de fantasia), e As Crônicas de Artur, de Bernard Cornwell, cujo primeiro volume saiu em 1995, Mary Stewart recria assim um Ciclo Arturiano menos fantasista e mais histórico, ambientando-o por volta do ano de 470 d. C., em cenários reais. Para tanto, mistura personagens completamente inventadas e personagens supostamente verídicas, como Ambrosius, que teria sido Grande Rei da Grã-Bretanha. Este talvez seja um dos pontos mais fortes de sua obra, rica em pesquisa e detalhamento de uma cultura já tão distante e envolta em mistérios.
Em suma, Mary Stewart parte de um tema já bastante explorado para criar algo novo, sem cair em repetições ou clichês. Com isso, cria um efeito de surpresa bem-vindo, construindo uma personagem, ao mesmo tempo, nova e familiar, bem construída, verossímil, profunda e cativante, de modo que o leitor torce por ela, mesmo quando suas ações ou decisões são, aos olhos de hoje, moralmente questionáveis. Pois, ao fim, tudo o que importa é conhecer melhor este novo Merlin.
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BRUNO ANSELMI MATANGRANO, TRADUTOR E AUTOR DE DIVERSOS CONTOS E ARTIGOS, É MESTRE E DOUTORANDO EM LETRAS PELA USP
Na juventude. O ator Colin Morgan, como o personagemtítulo da série britânica ‘Merlin’
Referências. Morgana (Helen Mirren) e Merlin (Nicol Williamson), no filme ‘Excalibur’, de 1981