Na semana passada, encontrei o velho Compadre Geraldo de Melo tomando uma cervejinha no Shoppirng. E aí, como fazia um bom tempo que a gente não se falava, aproveitamos prá colocar a conversa em dia. Disse a ele que muita gente admira sua bravura, e principalmente suas façanhas com as temidas onças pintadas. Mas, lembrei também, que tem gente que andou duvidando de alguns de seus causos. O compadre não gostou muito da última frase, tirou o chapéu panamá, coçou a careca e começou:
Esse povo modernoso de hoje em dia, não tem muita noção da vida e das coisas do sertão. Só prá você ter uma ideia, lá se vão bem uns trinta e tantos anos, quando nem existia essa coisa de meio ambiente, nem esse tal de Ibama, com proibição disso e daquilo outro, eu fazia as minhas caçadas lá pelas bandas do rio Aporé. Gostava muito de caçar na região das cachoeiras de Cassilândia, onde tinha muita grota, muita onça criada, muita anta e uma paineira gigante, de uns 10 metros de roda, com raízes de até um metro de altura, fora do chão. Ali, eu colocava a minha winchester já manobrada no ponto de atirar, levava uma dúzia de perdigueiros, tudo bicho treinado de caça e deitava sossegado, numa cama improvisada entre duas raízes, só pensando na batalha com as pintadas no outro dia.
No mês passado, me bateu uma saudade danada desse tempo das caçadas, e aí eu resolvi fazer uma visita à velha paineira. Peguei meu jipe traçado às quatro horas da tarde e levei dois foguetes desses de festa de São João, para soltar na minha chegada. Mas, para minha surpresa, encontrei a grande paineira velha quase morta, com as raízes que formavam a minha cama, já apodrecidas e um buraco enorme, surgiu no tronco daquela árvore imensa. Aquilo me cortou o coração, uma judiação.
Ressabiado e já bem escovado da vida, achei melhor não entrar naquele buraco, até porque notei a presença de alguns estranhos moradores lá dentro. Mas o que mais me assustou foi a quantidade de ossos de porco, gado, cabrito, tudo espalhado em volta da velha paineira. Resolvi cair fora dali o mais rápido possível... quando de repente, só escutei o estrondo de um trovão, que estremeceu a terra. Junto, chegou uma ventania medonha que parecia o fim do mundo, o dia virou noite e o granizo pipocou que dava gosto de ver. Como o jipe ficou longe, lá na estrada boiadeira, não tive outro recurso, e jeito foi entrar naquela toca, no tronco da paineira, para esconder da chuva.
Compadre Chico, imagina a minha surpresa, quando dei de cara com quatro oncinhas brabinhas, partindo para cima de mim. Sorte que o buraco tinha espaço para eu rodar de um lado para outro, enquanto pegava um saco com um quilo de pó de fumo forte, misturado com pimenta malagueta. Joguei um punhado desse pó na cara da onça mais atrevida, que vinha na frente. O pó pegou em cheio nos olhos da bicha, e ela ficou doida, dando cambota e urrando igual um boi curraleiro. Consegui repetir a operação nos olhos das outras três, que urraram, deram pulos e se aquietaram num canto do buraco. Como eu tava de mão limpa, isso foi a minha “sarvação”.
Como ficar ali tava perigoso, resolvi enfrentar a chuva de pedra e ir embora, antes que a onça velha chegasse... quando me deparei com uma cascavel de dois metros e meio de comprimento, que entrou que nem um foguete no buraco, para se esconder da tempestade. Por sorte minha, o alívio da tinhosa ter encontrado um abrigo, parece ter sido tão grande, que ela logo, logo, foi se enroscando, fez uma rodilha, colocou a cabeça em cima e puxou o ronco. Saí de mansinho, bem devagar, na ponta dos pés, para não acordar a “zóio pelado” e, quando cheguei na boca do buraco, novamente o mundo desabou sobre mim.
Fiquei num beco sem saída. Compadre Chico, a pintada velha estava chegando, carregando um garrote bem criado, como se fosse um gato carregando um ratinho na boca, e ainda por cima, brigando com uma outra onça parda, que queria lhe roubar a “comida”. Nessa hora, “vortei de fasto” e fiquei matutando: “quando a onça pôr a cabeça para entrar, eu vou tacar duas mãos cheinhas de pó na cara dela”. Mas a danada chegou de fasto, porque as onças não colocam a caça dentro da toca, os filhotes têm que comer lá fora. Nesse ponto, eu tive sorte, porque a onça entrou de fasto, colocou o garrote embaixo do queixo, e ficou ali trocando sopapos com a onça parda, sem notar minha presença.
Aí compadre Chico, “carculei” com meus botões: “quem está perdido morre de atrevido, mas não de esmorecido”; dei um salto, peguei a cascavel pela nuca, ela abriu um bocão “desse tamanho” mostrando as quatro presas pontudas que nem agulha. Nessa hora, eu fui chegando devagarzinho e engatei a boca da cascavel no rabo da onça. Com a mordida, da cascavel, a pintadona arrancou que nem um foguete, urrando igual um leão, berrando que nem um boi e dando uma baita trombada na onça parda. Eu aproveitei e soltei os dois foguetes atrás dessa onça parda, que “azulou” doida “avuando” pro meio da mata.
E, como a chuva já tinha “acarmado”, nessa hora eu peguei o jipe e vazei na braquiara, com a intenção de nunca mais nem passar perto daquele lugar. Quando cheguei na entrada de Cassilândia, desesperado prá molhar a goela, parei lá na vendinha do Zé Pretinho, “prá tomá uma bagaceira prá acarmá o susto”. Aquilo “tava um furdunço”, o povo tudo tava meio assustado, de queixo caído e de cabelo em pé, contando que tinha passado ali uma onça louca, de dois rabos, urrando como um leão, voando mais rápido que um carro de corrida. Nessa hora eu “limpei a poeira da goela” e fiquei ali, bem caladinho no meu cantinho. Também, se eu contasse o que tinha “se assucedido“, acho que ninguém ia acreditar mesmo.