Por Valdivino Pina da Silva
Publicado em folhetins no Correio Mercantil em 1854, o romance em questão é uma obra inovadora, não só por representar artisticamente um código social e moral que, de certa forma, perdura até os nossos dias, mas sobretudo por apresentar uma estrutura narrativa igualmente moderna. A transgressão conteudística e formal do próprio Romantismo fez com que a obra acabasse quase despercebida na época em que foi produzida. Quanto às reflexões de caráter social, pretendemos condensar o pensamento de Antonio Candido, contido no seu ensaio Dialética da Malandragem e depois voltarmos para alguns traços estilísticos que ultrapassam os padrões artísticos da literatura brasileira de então.
Segundo o crítico, Memórias de um Sargento de Milícias é o retrato de uma sociedade em formação, em que a transgressão é uma forma de abolir a necessidade de trabalhar (notar que o protagonista Leonardo Filho é um “vadio-mestre”, “vadio-tipo”) e uma maneira “lícita” de transitar para o “ilícito”, relativizando assim a distinção entre o bem o e o mal. Temos a fusão entre o universo da ordem e da desordem. Representa o grau máximo do primeiro segmento o Major Vidigal (possível extensão da vontade real), árbitro incondicional de todas as polêmicas, terror dos malandros cariocas, enquanto pertencem ao universo da desordem, apenas para citarmos alguns, personagens como o bicheiro Teotônio, o Mestre-de-Cerimônias (amante da Cigana), José Manuel (caracterizado pela maledicência e mentira), Vidinha (símbolo da sensualidade) e a própria mãe do protagonista, Maria das Hortaliças (ícone da infidelidade).
Numa posição mediana e oscilando entre esses dois hemisférios, encontramos a personagem central, Leonardo Filho. Tentando encaminhá-lo para o lado positivo temos seu padrinho, o Compadre, e sua madrinha, a Comadre. Desde criança, ama Luisinha, paradigma da moça com a qual se deve casar. Ao perdê-la para José Manuel, após ser preso por vadiagem, encaminha-se para Vidinha, mulher com a qual se pode apenas ter prazer.
No entanto, a distinção entre o positivo e o negativo é apenas aparente. Afinal, o próprio Major Vidigal deixa-se corromper: amante de Maria Regalada, a fim de obter-lhe favores, não só solta Leonardo Filho, mas o promove a sargento de polícia, elevando-o definitivamente ao hemisfério positivo. Um caso semelhante aparece no Capítulo IX, “O Arranjei-me do Compadre”, pois nele, o padrinho, que até então fora uma pessoa honesta, humilde, mostra-nos uma outra faceta: ficou com a herança de um capitão moribundo, arranjando-se na vida.
Em se tratando dos traços estilísticos, a obra ultrapassa os preceitos estéticos (características) próprios do Romantismo. A começar pela sua tessitura, os capítulos são autônomos, curtos; são pequenos relatos, unidos apenas pela presença do protagonista. Esse caráter fragmentário, digressivo (a narrativa não segue uma ordem linear), a presença de um leitor incluso e de um narrador que, não raro, analisa fatos e personagens, fazem da obra um romance de transição para o Realismo.
Embora com estrutura folhetinesca, uma história de amor com happy end, o autor transgride a estrutura dos folhetins. Ao invés dos personagens burgueses dominando a cena, com sua linguagem carregada de erudição, temos agora o retrato das camadas populares da sociedade carioca, com sua linguagem coloquial repleta de incorreções gramaticais. Não mais as personagens idealizadas, mas o retrato fiel de costumes e hábitos das camadas sociais inferiores, com traços até negativos, como é a descrição de Luisinha.
Portanto, não seria contrassenso classificar a obra como um romance antirromântico, uma vez que o autor, por meio da ironia, expõe o ridículo, o jogo de interesses, a crítica à Igreja, ao autoritarismo policial; enfim, mostra-nos um Romantismo às avessas, em que não cabem as típicas idealizações que caracterizaram essa estética literária.
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VALDIVINO PINA DA SILVA, MESTRE E DOUTOR EM TEORIA DA LITERATURA, É PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
Autor. Manuel Antônio de Almeida