Amadeu Jesus Pe

Última flor do Lácio, inculta e bela!

Última flor do Lácio, inculta e bela!

Por Amadeu Jesus Pessotta - Professor

Por Amadeu Jesus Pessotta - Professor

Publicada há 7 anos

Não me indigna ouvir expressões como “nóis vai”, o plano “adéqua[i]” objetivos e ações, isso custa “dez real” e milhares de outras jargões linguísticos nas locuções populares. Fazem parte da línguafalada, aquela que se aprende “de ouvido”,sem compromisso com regras, como nas primeiras vozes da infância, na roda de amigos, nos “causos” populares, no falar cotidiano e despreocupado da pessoa comum, em ditos estereotipados, no linguajar inculto (e belo! – como diria Olavo Bilac[ii]). Eu também dizia, em infância e mesmo mais adiante, expressões tais e muitas outras cunhadas pela tradição. Um linguajar despojado, descompromissado, literalmente vulgar (vulgar em referência a vulgo, povo, plebe – o comum dos homens).

 

Falar assim não constitui qualquer demérito: é um falar valioso!Refiro-me, sim, à língua vernácula escrita, culta, clássica,aquela usada pelos oradores, escritores, comunicadores, e por aqueles que se “pretendem cultos e letrados”, mas se descuidam do respeito e reverência às origens e normas da língua.

 

As línguas latinas (também chamadas românicas ou neolatinas) derivaram do Latim (língua do Império Romano), como francês, espanhol, italiano e português. No poema de Bilac, "inculta" se refere ao latim vulgar falado pelo povo, pelas camadas populares. Declino alguns linguajares comuns do latim vulgar[iii]: familiar e plebeu, da classe baixa; castrense, dos soldados; náutico, dos marinheiros; proletário, dos operários; rural, dos camponeses – cada um com suasmarcaspróprias. Em contraste, o latim clássico, somente escrito, empregado pelos poetas, oradores, filósofos, historiadores, escritores,indivíduos consideradoscomo de classes superiores. O fato de cada linguajar possuir marcas peculiares não dificultava a comunicação entre os romanos e com os povos que conquistaram ao longo de quase um milênio.

 

Toda língua consiste de um conjunto de códigos e palavras, empregados segundo regras e leis de combinação – o que permite que a mensagem seja veiculada entre as pessoas de forma compreensível; a língua, portanto, é homogênea, um produto social, uma construção coletiva.Por seu turno, a fala é um ato individual, próprio de cada indivíduo que utiliza a língua. É a forma como um indivíduo se comunica de maneira oral; é afetada por fatores externos como costumes, vícios de linguagem relacionados ao ambiente e às pessoas, ao tipo de linguagem empregadana comunicação. Está em contínuo processo de construção, incorporando novas palavras e expressões, sujeitas a experiências individuais, tecnologias, por isso, a fala pode diferenciar-se de um indivíduo a outro[iv].

 

Passemos a Bilac e analisemos, brevemente, a primeira estrofe do seu soneto: “Última flor do Lácio, inculta e bela, / És, a um tempo, esplendor e sepultura: / Ouro nativo, que na ganga impura / A bruta mina entre os cascalhos vela...”

 

A metáfora “Última flor do Lácio, inculta e bela” refere-se à língua portuguesa como a última língua neolatina formada a partir do latim vulgar, falado pelos soldados da região italiana do Lácio.Era diferente do Latim Clássico, empregado pelas classes superiores. Para Bilac, a língua portuguesa, mesmo originária da linguagem popular, é bela. Com o paradoxo “És a um tempo, esplendor e sepultura”,Bilac vê “Esplendor”na língua nova, nascente, mas também “Sepultura”,apontando para a extinção, pelo desuso, do latim, que vai “morrendo” com a expansão e afirmação da língua portuguesa. Em “Ouro nativo, que na ganga impura / A bruta mina entre os cascalhos vela”, a língua portuguesa ainda carece de lapidação pela falaem comparação às outras línguas neolatinas: é um “ouro nativo” que se oculta (“vela”) entre “os cascalhos”, pronto a mostrar toda a sua beleza após os anos vindouros de lapidação.

 

Em que pesem sua beleza e ternura, é constantemente maculada porpretensos letrados que, quase sempre, ignoram as nuancese riquezas da língua e cometem aviltantes impropérios à “Última flor do Lácio”. É evidente que, na composição da língua portuguesa, mesclaram-se os linguajares, mas isso não nos autorizaa “usar” a língua como bem nos aprouver[v]. Bom seria se lhe tributássemos o mínimo respeito e dela melhor zelássemos.

 

Conquanto tantas vezes conspurcada por execrandas veleidades de incautos e ignóbeis oradores, a “Última Flor do Lácio” se oferece Altiva! Entrega-se Bela! Terna! Abre-se à perene lapidação!

    



 

[i] Para exemplificar, o verbo “adequar” é flexionado nas formas arrizotônicas (acento tônico fora do radical), não possuindo conjugação nas formas rizotônicas (acento tônico em sílaba do radical). Assim, não se fala “adéquo, adéquas, adéqua, adéquam” (acento tônico nas formas rizotônicas), mas “adequamos, adequais” (acento tônico nas formas arrizotônicas). Em decorrência, como o subjuntivo presente é derivado da primeira pessoa do singular do presente do indicativo (“adéquo”), inexistente, o verbo “adequar” não possui esse tempo verbal completo, ou seja, só possui as 1ª e 2ª pessoas do plural (“adequemos, adequeis). Trata-se de um verbo defectivo, com falhas na conjugação.(TERRA, E.; NICOLA, J.Verbos: guia prático de emprego e conjugação. 5ª. ed. São Paulo; Scipione, 2002. p. 59).

  

[ii] Refiro-me ao poema “Última flor do Lácio, inculta e bela” do poeta parnasiano brasileiro Olavo Bilac (1865-1918). A “última flor” é a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim. 

  

[iii] ALMEIDA, Napoleão Mendes de Almeida. Gramática latina: curso único e completo. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 540 p.

  

[iv]SAUSSURE, Ferdinand de.Curso de linguística geral. 30. ed. São Paulo: Cultrix, 2009. 279 p.

 

[v] Por favor, sem trocadilhos irônicos: “cada um usa a língua como quer”.

 


 

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