Família
Em 2017 eu lembro os dez anos da morte do meu querido avô Oswaldo Secatto, o responsável por toda a secattaiada que está aqui hoje — inclusive eu
Oswaldo Secatto
«07/02/1930
† 09/08/2007
DEZ ANOS SEM O VÉI SECATTO
Por O. A. SECATTO
Meu vô é o homem mais alto e mais forte que eu conheço!”, eu dizia quando era bem pequeno. Sua figura me fascinava: aquele talianão alto, sério e rigoroso, que não falava muito, mas demonstrava seu carinho no olhar, que fosse, e em pequenos gestos. E era sempre uma alegria quando ele e minha vó, a dona Dirce, vinham para Fernandópolis passar alguns dias.
Minha vó — ou “D’tê”, como o Véi Secatto carinhosamente a chamava [talvez em dialeto vêneto, não sei] — passava o dia anterior inteiro à viagem na cozinha: além das malas, ela fazia meu vô carregar — como ela mesma carregava — infinitas sacolas. Traziam crustoli, palitos de cebola, queijo, doce de leite, doce de abóbora, pão caseiro, bolacha de nata, pudim de pão, bolos e bolos e mais bolos. Exagerada como toda nonna italiana.
Vinham de ônibus — meu vô nunca aprendeu nem quis aprender a dirigir; na sua cidade, Monte Alto, locomovia-se a pé ou de bicicleta. Às vezes chegavam de surpresa, o táxi já na porta de casa — surpresa que a gente adorava!, mas deixava meu pai bravo: “Por que não avisaram? Eu ia buscar vocês na rodoviária!”
Fazíamos a maior festa. Um a um, antes do abraço apertado e depois de meu pai, eu e meus irmãos pedíamos sua bênção: “Bença, vô”. Beijávamos sua mão calejada e só o abraçávamos depois de ouvir “Deus te abençoe, meu fio”. Nem dava tempo de descansar da viagem, lá estava ele, discípulo de Aulë, como Fëanor, criando coisas e consertando outras com a habilidade das mãos. Meu irmão caçula puxou isso a ele, tanto que herdou suas ferramentas por expressa vontade do Véi Secatto. Fazia-se à vontade com as ferramentas: endireitava tudo que parecia tê-lo esperado todos aqueles meses. Telhado, parede, porta, mesa, portão, cadeira, janela, varal: consertava e pintava tudo.
Dormia e acordava muito cedo, trazia o pão para o café da manhã e esperava todo mundo acordar. Subia até o Frangão a pé e, às vezes, para minha alegria, aceitava que eu fosse com ele. Naquela calçada eu me sentia protegido sob sua sombra. Ansiava por, um dia, fazer por merecer meu nome — xará do vô Vardo. Uma responsabilidade e tanto. Pois ele sempre foi o exemplo de integridade e princípios, a referência moral para toda a família, mesmo em sua simplicidade de homem do campo que se tornou servidor público municipal em sua cidade e, de fato, mantinha sua família com o suor de seu rosto: dedicava-se às frentes de trabalho — serviço braçal — até ser transferido para zelar do cemitério — que ganhou cuidados como nunca antes com sua chegada —, onde se aposentou.
Meu vô, assim como foi para mim, era e sempre será o ídolo de meu pai. Sou Osvaldo em sua homenagem — apesar de ele grafar o nome mais próximo do original, com “w”. Osvaldo deriva de Oswaldo, forma romanizada de Oswald, que, como informa o site etymonline.com, origina-se do inglês antigo Osweald “deus poderoso”, “deus governante”, a partir do inglês antigo Os “deus” (apenas em nomes próprios), este do protoindo-europeu *ansu- “espírito”, associado ao inglês antigo (ge)weald “poder”. Um nome de respeito.
(Meu vô Antonio, pai de minha mãe e razão de meu segundo nome, eu não conheci: ele partiu antes.)
***
O senhor nos faz falta, vô. Faz muita falta para mim. Não é a mesma coisa sem o senhor. Pois o senhor dava mais sentido às nossas buscas e a cada uma de nossas conquistas. Era também com o senhor que eu dividia cada alegria de cada degrau da vida: a aprovação no difícil vestibular, a saída de casa para estudar Direito em outra cidade, a formatura de seu “primeiro neto com diploma” — “doutor”, como o senhor dizia com orgulho —, a aprovação no disputado concurso público do Tribunal de Justiça de São Paulo, a classificação que me permitiu ficar na minha própria cidade, a compra do primeiro carro e a aquisição do terreno onde hoje está minha casa. Queria que o senhor tivesse visto a casa que construí com a minha Bella, que tivesse festejado comigo o meu casamento, que tivesse acompanhado meu progresso na carreira, que tivesse conhecido minha pequena Laura, sua bisneta, a coisa mais linda deste mundo. Queria eu aninhá-la no colo do senhor para que ela também recebesse sua bênção, como tantos anos eu recebi.
***
O Véi Secatto sempre foi um homem muito sério, sisudo até, bravo. Para os filhos — minha tia Wilma, meu pai Henrique e meu tio Zete — bastava um olhar. Diziam-me que o vô nunca encostara a mão neles. Bastava um olhar. Tenho a lembrança de uma vez, quando muito pequeno, estar ao redor do vô na casa de meus pais enquanto ele brandia as ferramentas, consertando algo. Ficou bravo e me expulsou: criança não era para ficar perto de homem trabalhando. Era para que não nos machucássemos, depois entendi. Mas aquele temor reverencial que tínhamos por ele era algo mágico.
Com o tempo, a chuva do tempo e o vento da vida foram desbastando aquela camada sisuda e, mais e mais, foram mostrando a verdadeira personalidade do vô: um palhaço. Especialmente com os netos mais novos, filhos do tio Zete. Tudo que proibira aos filhos agora autorizava aos netos: brincava, contava piadas, caçoava e troçava de tudo e de todos, passava trotes na gente ao telefone, atendia como um senhor japonês — “Arô, arô?” —. Rimos muito dele e mais ainda com ele. Todos esses momentos estão gravados na memória e são indeléveis.
Sinto-me repleto, o tanto possível, ao lembrar que tudo quanto pude fiz para ele em vida: aproveitei meu vô ao máximo. Eu, meu irmão Gilber e meu primo Ró — este também já nos deixou — visitamos o Véi Secatto no hospital alguns dias antes de ele partir. Ele na cama, ligado a aparelhos para compensar seu coração já tão enfraquecido, minha vó passando as noites num sofá, sem deixá-lo. Passamos a tarde com ele, que já falava com a voz bem baixa e fraca. Disse à vó do orgulho que ele tinha dos filhos e dos netos, do quanto ele estava realizado como pai, como avô, como homem. Mais tarde minha vó nos repetiria suas palavras: “D’tê, você viu nossos netos? Todos são homens já, homens de bem. A gente não falhou, viu? Eu tenho muito orgulho deles. Já posso partir em paz.”
Não haveria de ser por menos que, após sua morte naquele dia 9 de agosto de 2007, eu tivesse um piripaque; o primeiro, não o último.
***
Vô, meu xará, todo dia o senhor nos dá força para continuar. As lágrimas que derramamos pelo senhor são preciosas. Carregamos seu nome adiante e nos guiamos por seu exemplo, sempre. Mas a saudade será sempre imensa.
A ausência do senhor no mundo é sentida.
Eu sinto.
Família. (acima) Meus avós Oswaldo e Dirce, comigo no colo, em meu batizado; (abaixo) meu pai, Henrique, a vó Dirce, o Véi Secatto, a tia Wilma e o tio Zete, na comemoração dos 50 anos de casados