O filme a Ilha do Medo, dirigido pelo cineasta americano Martin Scorsese, apresenta um cenário que envolve aspectos artísticos muito bem elaborados e um enredo com viés psicopatológico. Para aqueles que não assistiram ao longa metragem, é oportuno sinalizar que a trama tem seu início em 1954, quando um policial americano e seu parceiro vão a Shutter Island (ilha perto de Boston) a fim de investigar o desaparecimento misterioso de uma paciente-prisioneira da instituição penitenciária-manicomial Ashecliffe, Os médicos e funcionários da penitenciária não se mostram dispostos a colaborar com a investigação, mas o personagem de Di Caprio insiste: ele sabe que em Ashcliffe se fazem experimentos neurocirúrgicos com os presos e está convicto de que o assassino de sua mulher se encontra ali preso.
O protagonista sofre enxaquecas, confunde sonhos e realidade, tem alucinações. Quando chega ao farol da ilha, local onde supostamente se faziam os terríveis experimentos com os prisioneiros, descobre que toda a investigação não passava de um jogo de interpretação como última tentativa para devolver-lhe a sanidade.
O médico lhe conta que Andrew Laeddis (anagrama de Edward Daniels) houvera sido internado em Ashcliffe depois matar sua esposa que havia afogado seus três filhos. A loucura que se apossara de Andrew desde então se desenvolvera devido à representação intolerável pelo assassinato de seus filhos, portanto, um comportamento paranoico e agressivo perigoso a todos os moradores da ilha.
Embora Andrew tivesse consciência de toda sua história, ele insiste em seu delírio paranoico e é lobotomizado. O filme termina com uma pergunta lúcida de Andrew: “melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom?” Artisticamente, aspectos positivos do filme como a fotografia, a tensão psicológica constante, o suspense e o desfecho ambíguo são características próprias de uma grande obra, embora seu enredo não pareça muito original, com uma trama policialesca, o que não o empobrece e o classifique como filme menor.
Segundo uma ótica psicológica, o protagonista pode ser considerado um psicótico, devido às pistas claras e evidências reveladas no desenrolar da trama. A primeira pista refere-se à presença de dois policiais federais em um barco, visto na penumbra de uma densa neblina, cuja metáfora é o acobertamento de algo estranho ou escuso: é como se a neblina ocultasse algo que não se poderia dar a conhecer, recurso próprio aos filmes de suspense ou de investigação policial.
Outras metáforas (forma de representação simbólica de objetos ou seres) surgem no desenrolar do filme: as constantes alucinações e sonhos do personagem, a antítese teimosamente presente entre água e fogo (representantes simbólicos da lembrança do incêndio de sua casa e do afogamento dos filhos), os fósforos quando Laeddis procura iluminar o caminho para a Ala C (dos pacientes mais perigosos) – os fósforos, além de sua função de iluminar a passagem, parecem manter estreita relação entre o sonho de Andrew com o suposto assassino de sua mulher; diálogos sugestivos de pensamentos delirantes (menção de que até seus cigarros estão contaminados para que ele fique dopado – hipótese inconsistente porque outros prisioneiros fumam os mesmo cigarros); alucinações audiovisuais que sugerem o diagnóstico de psicose.
Pista importante para o diagnóstico de psicose é que o Eu de Andrew se “encarna” em Daniels (policial e herói), diferente do psicótico Andrew que, na realidade, é assassino com uma culpa fortíssima que lhe corrói as entranhas. Por fim, mas sem se esgotarem as pistas, o delírio paranoico de perseguição.
Ao lado ainda de uma riqueza de metáforas que aqui poderiam ser lembradas ou refletidas, na verdade, o personagem de Di Caprio é psicótico (classificado pelo DSM como esquizofrenia paranoide), obtida em decorrência de seu delírio e, simultaneamente, do fato de que suas funções mentais superiores ainda elaboram uma forma complexa de conspiração, apoiada por sintomas de alucinações delirantes constantes. Freud1 (p.11) aponta que, “nas psicoses [...] o apartar-se da realidade é levado a cabo por duas espécies de vias: ou porque o reprimido inconsciente se tornou excessivamente forte, de modo a dominar o consciente, que se liga à realidade; ou porque a realidade se tornou tão intoleravelmente angustiante, que o ego ameaçado se lança nos braços das forças instintuais inconscientes, em uma revolta desesperada”.
Andrew se coaduna perfeitamente com o diagnóstico de psicose, se considerada como uma defesa (mal) elaborada pelo Eu para ocultar uma realidade extremamente insuportável2, ou seja, o protagonista rejeita uma representação intolerável e a ela sobrepõe uma nova realidade (delírio), embora ele possa ser considerado portador de um transtorno de estresse pós-traumático, em virtude dos sintomas de alucinações que apresenta – é oportuno lembrar que o protagonista passara por eventos extremamente traumáticos antes de sua internação em Ashcliffe..
1 FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Tradução de J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago; 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud; v. XXII – 1932-1936)
2 FREUD, Sigmund. A perda da realidade na neurose e na psicose, 1924. In: ______. O ego, o Id e outros trabalhos. V. XIX. Tradução J Salomão. Rio de Janeiro: Imago; 1996. p.87-90. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud; v. XIX)