Com certeza, muitas pessoas possuem parentes ou amigos com nome de Ubiratan, Jacira, Tainá ou Cauã. Certamente, conhecem a personagem Iracema, “a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”, do romance homônimo do grande escritor brasileiro José de Alencar. Quando crianças, ouviram com atenção algumas lendas de nosso folclore, narradas pelos avós e pais, como as da Iara, Mãe d’água, Saci Pererê, Boto e Boitatá.
Muitos gostam dos derivados da mandioca, como a farinha, a tapioca, o mingau. Os leitores devem apreciar o suco de caju, rico em vitamina C, e o guaraná, que originou uma das bebidas mais populares do Brasil e que marcou a nossa infância. Difícil encontrar quem nunca saboreou, principalmente em festas juninas, amendoim, milho e outros quitutes típicos da época. Com dores de barriga, muitos devem ter ingeridoa infusão com folhas de boldo -digestiva, antitóxica e utilizada para tratar prisão de ventre. E, por fim, devem ter em casa bolsas trançadas com fios e fibras vegetais. Pois bem! Tudo isso tem relação com as culturas indígenas, que tanto influenciaramos costumes e as tradições brasileiras.
A influência indígena também está presente na toponímia (nomes de lugares, cidades e acidentes geográficos) de nossa região – a Noroeste Paulista. Assim, nomes como Votuporanga (em tupi guarani significa “clima agradável ou brisas suaves”), Tanabi (em tupi guarani significa “borboleta pequena”),Indiaporã, Guarani d’oeste e o nome do caudaloso rio Paraná (que em tupi guarani significa “braço de um rio largo, extenso, que forma uma ilha e encontra o mesmo rio mais adiante”) provêm da língua indígena.
Os indígenas estão entre os primeiros seres humanos que pisaram nas Américas. Embora o tema seja motivo de discussão acadêmica, as últimas pesquisas indicam que os ancestrais deles vieram de, pelo menos, três ondas migratórias iniciadas há 15.000 anos, provenientes da Ásia pelo Estreito de Bering, na Sibéria. Naquela época, o mundo vivia uma Era Glacial, e o Estreito estava congelado, servindo de “ponte” entre os continentes asiático e americano. Reparem nos traços dos nossos indígenas, tais como os “olhos puxados”, cabelos lisos e escuros. Como lembram os dos orientais! Essas semelhanças fisionômicas não são coincidências, mas resultantes de ancestralidade comum recente.
De lá para cá, eles tiveram que se adaptar à vida nas florestas e nos campos, conhecer e transpor seus obstáculos e se servirem de seus recursos para sobreviverem. Nessa luta pela sobrevivência, muitos conhecimentos foram acumulados e passados de geração em geração e, quando os europeus iniciaram o processo de colonização (há historiadores que utilizam o termo “invasão”) das Américas, especificamente os portugueses no Brasil, tiveram contato com as culturas indígenas e foram profundamente influenciados por elas durante os primórdios da formação da população brasileira.
A miscigenação não poderia ficar de fora dessa interação cultural. Um estudo interessante, coordenado pelo médico geneticista Sérgio Pena da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicado há 13 anos, definiu o DNA do brasileiro branco de classe média com renda superior à média nacional. De acordo com as conclusões da pesquisa, 61% dos brasileiros brancos tiveram, ao longo de 15 gerações, pelo menos uma ascendente (por parte de mãe) indígena ou africana. Por parte de pai, 57% desses brasileiros, participantes da pesquisa, têm origem europeia. Infelizmente, esse detalhe inusitado na origem materna e paterna do brasileiro branco de classe média revela um fato triste: "É uma comprovação da bastardia e, mais que isso, de uma história de opressão social do português dono do engenho, predador de africanas e ameríndias (mulheres indígenas da América); é a comprovação de uma história de estupro", disse, na época, o pesquisador Pena.
Em 2015, foi publicado o mais detalhado estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os povos indígenas brasileiros. De acordo com a pesquisa, a população indígena no país é de 896,9 mil indivíduos. Foram identificadas 305 etnias, sendo a Tikúna a maior de todas, com 46,1 mil representantes, perfazendo 6,8% da população indígena nacional. Foram reconhecidas 274 línguas. Segundo o censo, 36,2% dos indígenas vivem em área urbana e 63,8% na área rural.
Infelizmente, é triste a realidade de grande parte desses quase 900 mil indígenas brasileiros. De acordo com relatório apresentado ao Conselho dos Direitos Humanos pela relatora da Organização das Nações Unidas (ONU), Victoria Tauli-Corpuz, em 20 de setembro de 2016, “os indígenas brasileiros enfrentam, atualmente, riscos mais graves do que em qualquer outro momento desde a adoção da Constituição de 1988”. Um dos maiores problemas é a violência. “De acordo com o Conselho Indigenista Missionário, 92 indígenas foram assassinados em 2007; em 2014, esse número havia aumentado para 138, tendo o Mato Grosso do Sul o maior número de mortes. Com frequência, os assassinatos constituem represálias em contextos de reocupação de terras ancestrais pelos povos indígenas depois de longos atrasos nos processos de demarcação”, destacou a especialista da ONU. Os outros riscos são: paralisação dos processos de demarcação de reservas indígenas, os despejos e os impactos negativos de projetos de infraestrutura, como hidrelétricas, por exemplo, dentro ou próximos às terras indígenas e implantados sem consulta prévia aos afetados.
A origem desses problemas relaciona-se com a histórica discriminação sofrida pelos povos indígenas, manifestada na negligência e negação de seus direitos, além dos desdobramentos mais recentes associados às mudanças no cenário político, de acordo com a relatora da ONU. Ela tambémdestacou a necessidade de implantação de medidas urgentes para enfrentar a violência e a discriminação sofridas pelos indígenas e o fortalecimento de instituições públicas como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), além da importância de redobrar os esforços na demarcação e proteção de terras e alocar recursos para ter acesso à Justiça, entre outras recomendações.
Especialistas no tema, como o Prof. Dr. Sedeval Nardoque, Geógrafo e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus Três Lagoas, classificam a expulsão de suas terras tradicionais, pelos fazendeiros e pelo Estado, como uma das piores formas de violência cometidas contra os povos indígenas.
Desrespeitar os povos indígenas, cuja complexa cultura deixou marcas profundas em nossos costumes e cujo patrimônio genético foi, em grande parte, integrado ao da população brasileira em geral, é desrespeitar o próprio povo brasileiro, insultar a nossa história e desmerecer as raízes das nossas tradições.