CULTURA

O AUTÓGRAFO

O AUTÓGRAFO

Publicada há 7 anos

Por O.A. Secatto 





Edite era viúva,cinquentona, magra de dar dó. Tinha dois gatos velhos, castrados e gordos —Fúlvio e Dagoberto —. Sempre se recusando a pentear direito os cabelos, viviada pensão que seu finado marido lhe deixara, sozinha numa quitinete. E era umacolecionadora compulsiva. De qualquer coisa.

Até enviuvar dava-se principalmente com porcelanas pintadas, guardanapos com ponto de cruz ou barrado de crochê, chaveiros, anões de jardim e miniaturas de elefantes. Depois passou aos bichos de pelúcia, revistas de celebridades e fofoca, gatos — vivos — e livros, quaisquer livros. Nunca dera muita bola a autores, mas...
Quando soube que o Verissimo viria à cidade para o lançamento de seu mais recente livro, Edite foi tomada da mais insuportável ansiedade. Conhecia-o do jornal apenas — às vezes topava com sua coluna ao desembrulhar alguma compra da quitanda e a acabava lendo —, mas sabia que era famoso. “Colunista do Estadão!”, repetia para si mesma. Resolvida a também colecionar autógrafos, tratou de comprar o livro que seria lançado e se programou.
Chegado o dia, acordou cedo para o lançamento que seria só à tarde: às 17h, numa livraria do shopping da cidade. Quando foram abrir a livraria às 9h30, a Edite já estava por lá. A gerente estranhou.
— Como é que você conseguiu entrar aqui a esta hora?
A Edite desconversou.
— Hã?
Tentou entrar junto com a gerente, que lhe pediu que esperasse até as 10h. Ela não gostou, mas esperou, sentada no banco que ficava em frente à livraria. Às 10h em ponto, correu para dentro.
— Onde vai ser? Onde vai ser? — perguntou ela à gerente, que em minutos já não a suportava mais.
— Vai ser o quê?
— A sessão de autógrafos.
— De quem? — tentou desconversar.
— Do Verissimo, ora.
A gerente preparou sua melhor cara de paisagem. Disse:
— Ainda não sabemos.
— Como assim, não sabem?
— Não sabemos — retrucou ela, com certa satisfação. — Só vamos ver isso depois do almoço. Quer dizer, só depois das 15h, mais ou menos.
— Quer dizer que...?
— Isso mesmo, não vai adiantar esperar.
— Mas eu...
— Você pode voltar à tarde, alguns minutos antes do evento.
— Então, eu...
— Pode ir, fique tranquila. Afinal, você não vai querer perder o dia inteiro só para guardar lugar na fila, vai?
A Edite pensou um pouco. E respondeu, com naturalidade.
— Vou. Ainda bem que sou precavida. Trouxe meu almoço, o suco, o lanchinho para a tarde e... — ela passou a consultar o que mais tinha na bolsa. — Não vou nem precisar ir à praça de alimentação. Não é uma maravilha?
A gerente só deu um sorrisinho.
— Que ótimo — ela disse e, apontando o braço para o interior da livraria, arrematou com o teste prático de seu treinamento. — Fique à vontade.
Assim que deu as costas para a Edite, já fez um sinal com os olhos para as funcionárias ficarem de olho nela.
A Edite ficou por ali, pegou na mão e devolveu quase sem olhar praticamente todos os livros que alcançou sem precisar da escada.
As horas passaram. Depois do almoço, chegaram dois homens com uma grande mesa de madeira, estilo colonial, pernas curvadas. As funcionárias indicaram o local, bem no meio da livraria, e fizeram os arremates: uma plaquinha com a foto do Verissimo, o nome em destaque, e, ao lado, o livro em pé, apoiado num suporte de acrílico.
Mal haviam terminado o último detalhe, a Edite plantou-se na frente da mesa. Era só esperar. “Vou ser a primeira”, gostava de lembrar. As pessoas começaram a se enfileirar, livros na mão, ansiosas.
Horas, muitas horas esperando. A fila já estava para fora da livraria. E nada de escritor famoso — “colunista do Estadão!” — aparecer.
Foi só perto das 18h que ele apareceu, caminhando devagar, expressão serena como lhe cunhou a idade. Simpático, foi cumprimentando a todos.
— Boa tarde, boa tarde.
Parou para dizer umas palavras a um amigo que reconhecera, perto da mesa de autógrafos. Depois respondeu a umas perguntas do repórter que recém chegara e o interceptara no caminho à mesa. A Edite impaciente. Quando o Verissimo, enfim, sentou-se, a Edite o recebeu com o livro em mãos e a melhor cara que pôde fazer.
— Ai, nem acredito que vou ser a primeira a ter um autógrafo seu, Lu — ela mesma se fizera íntima dele nas últimas semanas e passara a chamar o Luis Fernando Verissimo de “Lu” —.
— Primeira? — ele estranhou.
— É, nesse livro. O primeiro exemplar a ser autografado!
Ele não se entusiasmou com o fato além de um discreto sorriso. Disse:
— Ah. — E continuou a autografar. — Qual o nome?
— Edite.
Ele escrevia devagar. Ela franziu o cenho, intrigada. Perguntou:
— Como assim, “ah”?
— Hã? — ele desconversou, interrompendo a caneta.
— Este não é o primeiro autógrafo?
— Primeiro?
— É. Quer dizer, primeiro autógrafo nesse livro.
Ele não entendeu o porquê daquilo e confessou:
— Na verdade, já autografei alguns para a família.
Ela parou para pensar. Expressão vazia.
— Ah, família não conta. Tudo bem.
Ele voltou a escrever. Lembrou-se de algo.
— Na verdade, acabei autografando alguns exemplares para amigos que foram em casa. Semana passada.
Ela parou para pensar de novo. Pareceu não gostar.
— Hum...
Ele continuou o autógrafo.
— O seu é com “t” e “e” ou “th”?
— Meu o quê?
— Nome.
— Ah, “t” e “e”.
Um breve intervalo. As pessoas falando alto na fila.
— Mas este é o primeiro lançamento do livro ao público em geral, não é?
— É, é. — ele soltou. Depois, repensou. — Quer dizer...
Ela se irritou. Fechou a cara e mordeu o lábio.
— Como assim, “quer dizer”?
Ele começou a se preocupar, a caneta tremendo na mão.
— É... — balbuciou, já olhando para os lados à procura de alguma ajuda.
— Hein? — ela insistiu. Ele se encolheu na cadeira.
— Na verdade...
— Na verdade, o quê?
— Já fizemos um pré-lançamento e...
— Quê?!
— ...e uma sessão de autógrafos lá em Porto Alegre, mas...
— O quê?! — Olhos vermelhos.
— Mas foi algo bem simplesinho... Nem conta — ele tentou argumentar.
— Ah, é? Quer saber? Não quero mais!
A Edite pegou o livro das mãos dele num golpe, o autógrafo inacabado. O Verissimo tentou falar “Socorro...”, mas a voz não saiu. Fulminando o livro com os olhos, a Edite o tacou na mesa com força. Todos olharam com espanto.
— Não quero mais mesmo! Tchau! — gritou ela. E saiu bufando.
O Verissimo, já debaixo da mesa, sem ver mais nada.
— Edite?...
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“Só há umavantagem na solidão: poder ir ao banheiro de porta aberta. (...) A gente vive,passa por milhares de experiências (as mais intensas) para, afinal, convencer-sede que as melhores coisas da vida são comer e dormir.”

 

ANTÔNIO MARIA

NASCIDO EM RECIFE (PE), EM 1921, O CRONISTA,AUTOR DE “BENDITAS SEJAM AS MOÇAS”, DENTRE OUTROS, MORREU NO RIO DE JANEIRO(RJ), EM 1964.




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