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A VELHINHA, O DETETIVE E O ANALISTA SÃO VERÍSSIMOS

A VELHINHA, O DETETIVE E O ANALISTA SÃO VERÍSSIMOS

Publicada há 7 anos

Por Jacqueline Paggioro 



Veríssimos. A velhinha de Taubaté e o detetive particular Ed Mort. 



Aquele fatídico agosto de 2005 foi o divisor de águas na vida daquela pacata cidadã. A morte da tia, além de deixar enorme tristeza em todos os membros da família, causou comoção no país, afinal, foi a derrocada de um ícone nacional: a “Velhinha de Taubaté”, último bastião da credulidade nos governos do Brasil.


A tia arrastava multidões à sua cidade natal, que chegavam em ônibus de excursão: era um verdadeiro atrativo turístico desde que o fenômeno de sua credulidade veio a público durante o governo do General João Baptista de Figueiredo, o último do ciclo dos generais da “Redentora”. No entorno de sua humilde residência instalaram roda gigante, estande de tiro ao alvo e tendas (para vender imagens dela e também pamonha e caldo de cana).


Sempre acompanhou a política do país, desde Getúlio Vargas, passando pelos colaboradores dos governos militares. Sarney lhe telefonava sempre para saber se ainda acreditava nele; Collor visitou-a algumas vezes pedindo que não o deixasse só. Fã do Fernando Henrique Cardoso, dizem quase teve um treco quando soube da compra de votos para sua reeleição, mas se recuperou após as informações oficiais de que aquilo era intriga da oposição. Desde o começo acreditou no Lula, até rebatizou seu gato que passou a chamar Zé. Depois do FFHHCC seu ídolo maior foi o Palocci.


Morreu na frente da televisão no dia dezenove, tomando chá com bolinhos de polvilho, os mesmos que ela gentilmente oferecia aos turistas que visitavam a cidade para conhecê-la. A infame declaração da irmã, Suzette, à imprensa, de que a tia ultimamente começara a dar sinais de desânimo e — para sua total indignação — de descrença, substituiu-lhe o torpor da dor pelo fogo da ira. (“Aquela mentirosa, fazia titia acreditar que fazia trabalho social com religiosas em Brasília e na verdade tem uma agência de acompanhantes para congressistas solitários no planalto!”)


Desde então, a indignada sobrinha procura alguém para aplacar sua dor, pois além da calúnia da Suzette, as circunstâncias da morte da crédula  anciã não foram esclarecidas e o noticiário fazia questão de inventar as coisas mais estapafúrdias. 


Disseram que localizaram um pedaço de papel com números e o que parecia ser a palavra “offshore” em letra tremida e que isso indicaria que a tia tinha uma conta no exterior, pois recebia para acreditar no governo. Na verdade, os números eram apenas palpite para a loteria acrescidos da palavra “Oxalá”, ela acreditava piamente que um dia a sorte lhe viria: “Ah, essa imprensa marrom!”


Pior mesmo foi ver manchetes nos mais variados jornais de que a tia nunca se recuperara do choque da notícia da compra de votos para reeleger o Fernando Henrique, seu ídolo na ocasião, apesar de depois acreditar em todos os desmentidos e que, debilitada, sofreu com as denúncias contra o Palocci, ídolo substituto do FFHHCC, e outro baque quando soube que nem no Ministério Público se podia confiar.  E que por isso, a hipótese mais provável era o suicídio (“Tudo culpa da Suzette!”). Sobrou até pro coitado do Zé, pobre gato.


A desesperada sobrinha não teve dúvidas: resolveu contratar um detetive. Queria restabelecer a verdade, apenas isso.


Como a grana era curta e o desespero era imenso, lembrou-se da indicação de uma turista carioca que foi a Taubaté, quando a tia ainda vivia. A mulher lhe dissera que, certa feita, contratou um detetive particular, pois o marido, após receber uma herança, foi visitar a líder da seita a que pertenciam e desapareceu. Ambos seguiam a Nova Igreja do Jesus Baiano, e o tipo achou o marido e o dinheiro. Disse que ficou furiosa, pois ele se passou pelo Cristo baiano que retornaria, segundo a líder da seita, e por isso quase lhe bateu e foi embora sem lhe pagar.

A esperançosa sobrinha seguiu para o Rio de Janeiro.


Mort. Ed Mort. Detetive Particular. É o que estava escrito na plaqueta da porta. A sala era uma espécie de armário numa galeria de Copacabana, junto com um telefone mudo e uma penca de baratas. Entre uma escola de cabeleireiros e uma loja de carimbos.


Era um tipo burlesco o tal detetive. Diante do espanto da improvável cliente, contou-lhe que seu “escri” — era assim que se referia ao seu local de trabalho — estava um tanto abandonado porque estava às voltas com um caso de desaparecimento de um sociólogo francês entremeado com a tentativa de escrever sua autobiografia — do início humilde na Penha ao atual esplendor entre baratas — em menos de quatro páginas. (“Creio que o tipo não foi com a minha cara, ou tem a impressão que vou dar calote, como a fulana da seita do Jesus Baiano; maldita Suzette, que me colocou nessa enrascada!”) No meio da explicação, eis que surge no canto da sala um rato albino. Ele o chamava de Voltaire, porque ele “às vezes desaparecia, mas sempre voltava”, o detetive procurou logo explicar. Sem mais, não querendo ouvir a história da moça, dispensou a cliente — não ousou lhe dizer, mas era feia a coitadinha. Ela nem notou que ao sair a placa da porta fora roubada. Mort. Ed Mort. Detetive Particular, estava escrito.


Desesperançada resolveu que voltaria a Taubaté.


Dentro do táxi rumo à rodoviária e aos prantos, ouviu do sensível motorista — com o inconfundível sotaque dos gaúchos — as peripécias de um famoso psicanalista conterrâneo seu, mais ortodoxo que pijama listrado ou pomada Minâncora, freudiano de carregar bandeira, que se especializou em Passo Fundo e criou uma técnica hoje reconhecida mundo afora: a terapia do “joelhaço”, para “sacudir as ideias e restabelecer as prioridades”. Atendia de bombacha, pés descalços e cuia em punho. Na estante tinha um Freud entalhado em imbuia. Ante a apresentação do terapeuta e da terapia, o choro convulsivo da moça foi aplacado pela curiosidade. O taxista informou-a de que o tal, que antes atendia em Bagé, passara a clinicar ali mesmo no Rio de Janeiro, no Baixo Leblon.


Ansiosa, pediu para o taxista voltar e deixá-la no consultório do Analista de Bagé.

No caminho, o taxista contou que, quando a princesa Diana da Inglaterra estava com uma doença nervosa, o analista de Bagé foi visto no aeroporto do Rio de Janeiro embarcando num voo internacional com sua garrafa térmica — que, segundo ele, tem uma importância sociológica, pois a mesma aumentou em muito a mobilidade do gaúcho; hoje ela é a segunda maior responsável pela evasão de gaúchos para outros estados, depois do governo. E surgiu o boato de que a doença da princesa e a viagem do analista tinham ligação — segundo o próprio: “pra boato e briga em bolicho, basta um cochicho”. Disseram que, apesar de um problema na alfândega de Londres — os pelegos e o fumo em corda foram confiscados para exame pelas autoridades sanitárias, mas o facão ficou — e o analista de Bagé foi recebido “como vipe, tchê” e levado às pressas para o palácio, já que sua viagem fora a pedido da família real. Recorreram ao analista de Bagé quando o último recurso, a acupuntura, foi descartado por falta do que espetar. Apesar da sua crescente reputação internacional, ele só é chamado no fim de uma escalada bem definida: medicina convencional, curandeirismo, acupuntura e ele. Então, ainda segundo a boataria, o analista de Bagé, depois de ouvir a princesa contar seus problemas, suas angústias e inquietações, teria diagnosticado: “Frescura”. E receitou, com alguma dificuldade, uma dieta específica, pois seu inglês é da fronteira, igual ao espanhol, só com o agá mais aspirado: “Foi más duro que ferrá cavalo de estátua, tchê. A indiada não queria entendê o que é moganga com leite gordo!”


A corrida chegava ao final, e com ele a recomendação para procurar Lindaura, a recepcionista do analista — que também dá —, indicando-lhe que ela faz um questionário prévio: o que pensa, de quem gosta e não gosta, quais são suas ideias; dependendo das respostas, o cliente entra e se deita no divã.


A entrevista com Lindaura foi fácil, afinal, a tia de Taubaté era famosa. A surpresa ficou por conta da sessão de terapia. Foi recebida pelo gaúcho com um “se abanque no más que tá incluído no preço” e deitou-se no divã coberto com lã de ovelha e foi convidada a aceitar a bomba de chimarrão — segundo o taxista ele gosta de charlar passando a cuia, pois loucura não tem micróbio. Depois de ouvir o causo da moça e comentar que a história da tia taubateana era mais comentada que vida de manicure, encerrou o caso indicando que a china (Suzette) merecia uma surra de relho.


A moça saiu do consultório pensando no alívio que seria dar uma sova na safada. E apressada retornou a Taubaté.


No regresso, o que constatou a fez esquecer a peleja com a irmã, pois percebeu que as alegres multidões, que antes se aglomeravam no entorno da casa da tia na esperança de ver o fenômeno —  uma brasileira que ainda acreditava —, foram substituídas por tristes romeiros que visitavam o santuário improvisado na frente da casa dela, na esperança de recuperar a fé.


A Velhinha de Taubaté se transformou em milagreira depois de morta.


As pessoas querem acreditar, pelo menos, em quem acreditou um dia.



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