Um deserto qualquer.No passado, muito lá passado. De um pequeno promontório, com uma grande montanha ao fundo, alguém falava para uma multidão.
—O Senhor falou comigo. Sua grande voz era como o trovão e fez a montanha tremer!
—É! — gritou a multidão.
—Então, Ele mandou uma mensagem para nós: “Não tenham medo, pois Eu estou com vocês!”
—É! — bradaram, levantando as mãos.
—“Eu sou o Deus da vitória! Eu trago a paz!”
—É! — responderam todos em uníssono.
—“Eu sou o Senhor dos Exércitos!”, Ele me disse.
—É! — a multidão continuava gritando. Os braços erguidos em sincronia militar.
Láno meio, um levantou a mão.
—Sim? — quis saber o líder, no promontório.
—“Senhor dos Exércitos”?
—É o que foi dito.
—Ele não é um deus de paz?
—Bem, é que...
—E por que a gente não ouviu nada?
—Como?
—Eu não ouvi trovões — ele começou a olhar para os companheiros do lado. — Você ouviu? Você ouviu? — Eles balançavam a cabeça de um lado para o outro. —Ninguém ouviu.
—Você por acaso...?
Oque protestava continuou.
—Também não senti a montanha tremer... — Ele olhou para os mesmos companheirosao seu lado. — Você sentiu? Você sentiu? Ninguém sentiu.
—Ora, é claro que...
—Se Ele é Deus — o líder foi interrompido novamente —, por que não fala pra todo mundo aqui de uma vez?
—Porque nem todos estão prontos.
—Por que não?
—Você faz muitas perguntas, né?
—Eu queria saber por que não estamos prontos.
—Você está contestando Deus?! — esbravejou o líder com uma careta.
—Deus não, você.
—Ora... — as mãos se fechando, incrédulo com aquilo.
—Por que Ele só fala com você?
—Ele me escolheu.
—Ah, então, entre todo mundo aqui, Deus escolheu justo você?
—É — disse ele, levantando os olhos e mordendo os lábios.
—Quer dizer que nenhum de nós é digno de ouvir diretamente a voz de Deus, mas é bom o suficiente pra morrer na guerra?
—É! — saiu o grito de alguns. O líder os fulminou com o olhar.
—Não foi isso que eu falei. Eu...
—Mas foi o que disse. E, a propósito, se Ele é um deus de paz, por que nós estamos indo fazer guerra?
—É! — gritaram alguns ali perto, por reflexo. O líder rangeu os dentes, pôs amão no rosto, o pé esquerdo batendo incessantemente no chão.
—Para recuperar a terra prometida.
—“Recuperar”? Nunca estivemos lá!
—Na verdade...
—Prometida pra quem?
—Para nós, ora!
—Nós por quê?
—Pois somos o povo escolhido.
—“Escolhido”?
—É.
—Mas Deus não é o Criador de todas as coisas?
—É.
—Inclusive dos outros povos?
—Sim. Foi Ele que criou o Homem.
—Todos os homens?
—Todos os homens.
—Então, se Ele criou tudo e todos, inclusive todos os homens, por que sónós somos o “povo escolhido”?
—Porque nós obedecemos às Suas leis.
—Que leis, exatamente?
—As que Ele nos revelou.
—Como?
—Falando.
—Com quem?
—Comigo.
—Aí estamos nós de novo... — concluiu ele, coçando a cabeça.
—Como assim?
—Tudo o que você disse você diz que Deus disse, mas quem está dizendo é vocêmesmo, não Deus. Não é?
—É! — gritou um ali do lado; e depois se encolheu sob o olhar furioso do líder.
Houvesilêncio. Entre a multidão, mãos nos queixos, mãos nos cotovelos, olhos paracima, cogitações.
Caretasde dúvidas. Olhares para os lados. Cochichos, conversas paralelas. Pésrevirando a areia do chão desértico. Um burburinho geral.
Atéque o líder arregalou os olhos e apontou o dedo para o que contestava.
—Infiel! — ele gritou.
Todos,então, se horrorizaram com aquele que discordava. E o apedrejaram. Até umajusta e merecida morte. Depois, resolveram colocar tudo aquilo por escrito. Paraficar mais difícil de contestar.