Por Hércules Domingues de Faria
Uma das divas de nosso teatro, Bibi Ferreira, queixou-se com amargura da velhice. O general De Gaule foi mais fundo: escreveu que envelhecer é uma tragédia.
Carlos Drummond registrou, com brutalidade, numas quase-memórias que “o tempo é o mais cruel dos escultores; e trabalha sobre barro”. A senectude pode ser tudo isto e muito mais até. Fico com André Maurrois, para quem a arte de viver é a mesma, sem descontinuação, da de morrer.
Quando se vive uma vida bem vivida, morre-se em paz, com dignidade, embora vezes sem conta o transe seja doído. Dor é desconforto. Não é desgraça, nem tragédia. De todo modo, a velhice fragiliza demais. E não falo do soma somente. O velho carece muito mais de afeição do que de cuidados materiais, conquanto estes também sejam de crucial importância. O desgaste da máquina é inexorável, a manutenção complexa e custosa.
Infelizmente, não são raros os casos em que uma vida de trabalheiras sem quartel, sacrifícios e abnegação se finda em penúria e avareza de carinho por parte daqueles que mais receberam, os filhos. Descaso, abandono e até maus tratos constituem a paga com que alguns idosos são “agraciados” por seus maiores devedores.
A mídia tem mostrado que nem idosos abonados escapam de agressões, perpetradas por acompanhantes. Coisa evitável, porque, embora dolorosa a decisão, existem boas casas de repouso que se esmeram em cuidados.
Anos atrás, numa incursão pelo Pantanal, estavam no barco o Sr. Wilsom Moreira e o filho Netão. Grandalhões, fartos de carnes, viviam em simbiose, o filho desmanchando-se em atenção com o pai. Comentei com ele a paparicação (todos os filhos são assim carinhosos com o velho). Disse-me rindo: “Se esse filho da mãe fosse pobre, ele ia ver só.” Naquele moço bonachão, isso era apenas o prazer de fazer piada, mas a coisa realmente pega com idosos sem recursos.
Sem embargo dessas aberrações, desses insultos à natureza das coisas — o homem é o senhor da maldade — tem havido alguma evolução nas leis de proteção, em muitos daqueles agentes públicos que as operam e mesmo nas políticas sociais compensatórias.
Rio Preto abriga uma Delegacia Regional de Proteção ao Idoso que é uma instituição exemplar de zelo e dedicação à causa. Delegados calejados no ofício, de grande tarimba e dimensão humana, são um porto seguro para aqueles que se socorrem de seus préstimos e experiência. Lideram uma equipe que na certa foi escolhida com critério e sabedoria. Do atendimento inaugural, na recepção, feito com atenção e respeito, passa-se à burocracia interna estruturada em competência e presteza. A escrivã é dessas pessoas que infundem confiança e conforto, estampados nos olhos claros, límpidos feito fonte de montanha.
Os idosos de Rio Preto e região contam com a proteção frondosa dessa delegacia, árvore tutelar num deserto de atribulações. Órgão conduzido por uma gente cuja sensibilidade contraria o estereótipo que, tantas vezes equivocados, cultivamos do profissional de polícia. As dores que os anos acumulam, não raro em avalanches, são ali minimizadas pelo calor humano que se respira entre suas paredes. Belo exemplo de órgão público que funciona no diapasão dos interesses, bem-estar e carências de sua clientela. Fio de esperança e certeza de que nem tudo está podre neste reino da Dinamarca. Reino de fancaria, purgatório de idosos ao desamparo em que Hamlets dementados não veem fantasmas que lhes contam segredos terríveis. Mas são eles próprios os fantasmas, monstros estufados de maldade e cinismo.
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HÉRCULES DOMINGUES DE FARIA, BANCÁRIO APOSENTADO E FORMADO EM LETRAS, FOI COLUNISTA DOS JORNAIS ‘CORREIO DE MIRASSOL’ E ‘DIÁRIO DA REGIÃO’