CULTURA
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
“A ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não
“A ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não
Por Lino Marfioli
Mário de Andrade, em O peru de Natal, faz o personagem-narrador dizer, referindo-se ao pai — sujeito “acolchoado no medíocre” —, que privara a família do “aproveitamento da vida quanto às felicidades materiais”, que este era o “puro-sangue dos desmancha-prazeres”. Receio ter-me tornado, para meus antigos companheiros, a triste figura evocada neste conto.
Como é desagradável ter a nosso lado, no momento em que erguemos a taça para o brinde da vitória tão almejada, alguém que nos lembre que essa vitória se deu à custa do sacrifício de valores e posturas éticas que outrora defendíamos com tanto zelo. Admitamos: negociamos os princípios; compramos, através da assistência interessada, a adesão dos refratários ao nosso projeto pessoal de poder — enfim, capitulamos. A ocasião faz o ladrão? Não, apenas o revela. O doce fora recusado apenas porque era inatingível; quando passou perto o suficiente, atiramo-nos a ele sem escrúpulos ou remorsos. Nem admitimos a contradição. Supunha-me companheiro de pessoas moralmente fortes, capazes de renúncia e, com tristeza, vejo que me enganei. “Engano d’alma ledo e cego”, diria um mestre, “não sejamos inteiros numa fé talvez sem causa”, repetiria um outro. Manteve-se a dignidade da recusa apenas enquanto a oferta de fato não existiu; mercadejamos a alma, pior que Fausto.
Concluo, observando o vale-tudo dos dias que correm, que acabamos por validar na prática o que disse o sr.José Arthur Giannotti: “O exercício da política comporta uma zona cinzenta, de amoralidade”, na qual o supracitado senhor (filósofo!) disse ser possível a comissão de algo que ele chamou, elegantemente, de “infração intersticial”. É deprimente; sempre acreditei que a mulher de César tem de ser honesta e não apenas de parecerhonesta, sendo esta uma dicotomia grave entre essência e aparência, inaceitável em se tratando de pessoas que querem um mundo verdadeiramente ético.
Aristóteles, o padre Vieira e inúmeros autores ao longo dos tempos têm afirmado de forma categórica, com palavras diferentes, mas iguais em substância: a virtude só se consubstancia na prática, nos atos diários, rotineiros; não existe honestidade “em tese”, ética “a priori”. Não há que tergiversar: a ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não é ético, é oportunista, diga-se com todas as letras. A menos, é claro, que se admita a tese maquiavélica de que os fins justificam os meios ou, recordando a parábola orwelliana, que todos os animais são iguais, mas que alguns são mais iguaise, caso o façamos, devemos ter, no mínimo, a decência de conceder aos nossos adversários que tal interpretação também lhes convinha e, portanto, nada mais no mundo é censurável, tudo é permitido, tudo está certo, pois atende aos interesses dos poderosos de plantão e, nesse caso, ética é apenas uma palavra — uma palavra infeliz e sem sentido.
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LINO MARFIOLI É PROFESSOR APOSENTADO