CULTURA

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

“A ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não

“A ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não

Publicada há 6 anos

Por Lino Marfioli 


Mário de Andrade, em O peru de Natal, faz o personagem-narrador dizer, referindo-se ao pai — sujeito “acolchoado no medíocre” —, que privara a família do “aproveitamento da vida quanto às felicidades materiais”, que este era o “puro-sangue dos desmancha-prazeres”. Receio ter-me tornado, para meus antigos companheiros, a triste figura evocada neste conto.


Como é desagradável ter a nosso lado, no momento em que erguemos a taça para o brinde da vitória tão almejada, alguém que nos lembre que essa vitória se deu à custa do sacrifício de valores e posturas éticas que outrora defendíamos com tanto zelo. Admitamos: negociamos os princípios; compramos, através da assistência interessada, a adesão dos refratários ao nosso projeto pessoal de poder — enfim, capitulamos. A ocasião faz o ladrão? Não, apenas o revela. O doce fora recusado apenas porque era inatingível; quando passou perto o suficiente, atiramo-nos a ele sem escrúpulos ou remorsos. Nem admitimos a contradição. Supunha-me companheiro de pessoas moralmente fortes, capazes de renúncia e, com tristeza, vejo que me enganei. “Engano d’alma ledo e cego”, diria um mestre, “não sejamos inteiros numa fé talvez sem causa”, repetiria um outro. Manteve-se a dignidade da recusa apenas enquanto a oferta de fato não existiu; mercadejamos a alma, pior que Fausto.


Concluo, observando o vale-tudo dos dias que correm, que acabamos por validar na prática o que disse o sr.José Arthur Giannotti: “O exercício da política comporta uma zona cinzenta, de amoralidade”, na qual o supracitado senhor (filósofo!) disse ser possível a comissão de algo que ele chamou, elegantemente, de “infração intersticial”. É deprimente; sempre acreditei que a mulher de César tem de ser honesta e não apenas de parecerhonesta, sendo esta uma dicotomia grave entre essência e aparência, inaceitável em se tratando de pessoas que querem um mundo verdadeiramente ético.


Aristóteles, o padre Vieira e inúmeros autores ao longo dos tempos têm afirmado de forma categórica, com palavras diferentes, mas iguais em substância: a virtude só se consubstancia na prática, nos atos diários, rotineiros; não existe honestidade “em tese”, ética “a priori”. Não há que tergiversar: a ética não compõe com o oportunismo, não nos permite fechar os olhos da consciência no momento conveniente. Quem defende ações que antes criticava só porque delas agora se beneficia não é ético, é oportunista, diga-se com todas as letras. A menos, é claro, que se admita a tese maquiavélica de que os fins justificam os meios ou, recordando a parábola orwelliana, que todos os animais são iguais, mas que alguns são mais iguaise, caso o façamos, devemos ter, no mínimo, a decência de conceder aos nossos adversários que tal interpretação também lhes convinha e, portanto, nada mais no mundo é censurável, tudo é permitido, tudo está certo, pois atende aos interesses dos poderosos de plantão e, nesse caso, ética é apenas uma palavra — uma palavra infeliz e sem sentido.


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LINO MARFIOLI É PROFESSOR APOSENTADO




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