Histórias do t

Lembra da Maria Fumaça?

Lembra da Maria Fumaça?

Por Claudinei Cabreira

Por Claudinei Cabreira

Publicada há 8 anos



Para os mocinhos e mocinhas do meu tempo, a maior aventura do mundo era viajar de trem. Na minha infância, me lembro bem que quando meus pais avisavam que a gente ia visitar um parente numa cidade próxima e que era preciso “pegar o trem”, a notícia virava uma grande festa.  A ansiedade era tanta, que se contava nos dedos e se marcava nas antigas folhinhas do calendário, os dias que faltavam. Na véspera da “grande viagem” a gente nem dormia direito.


Primeiro, acontecia o cuidadoso ritual de arrumar as malas. Podia estar o maior calorão do mundo, mas era preciso levar roupas de frio e isso ninguém discutia, porque nossa mãe sempre tinha razão. Aliás, ela sempre preparava algumas guloseimas para presentear os parentes; doce disso, doce daquilo, bolo de fubá, pão assado na folha de bananeira no forno à lenha do quintal de casa. E para economizar dinheiro durante a viagem, para nós ela preparava duas garrafas de Q-Suco e alguns sanduiches de pão com mortadela da lendária marca Bandeirantes. Era tanta coisa para levar, que o passeio parecia uma mudança. Um tumulto!


Para transportar a família e a “tralha” de viagem até a Estação da antiga EFA – Estrada de Ferro Araraquarense, era quase que uma outra viagem. Meu pai contratava uma charrete e combinava o horário com o charreteiro, quase sempre um velho conhecido. Agora, como é que cabia numa charrete todo mundo, as malas e um monte de sacolas, não me pergunte. Mas sempre dava certo.

Quando a gente chegava na Estação de Trem, sempre entupida de gente indo e vindo, carregando tudo que é tipo de bugiganga, era outro sufoco. Enquanto minha mãe ficava tomando conta da molecadinha (era uma escadinha, como diziam os antigos), meu pai entrava na fila do guichê para comprar os bilhetes. Como eu era o filho mais velho, logo tinha que ajudar tomar conta dos pequenos. O medo era que algum deles pudesse cair na linha do trem!


Era meu pai chegar de volta e todo mundo ficava comportado de novo. E aí, igual o resto das pessoas, a gente ficava olhando para o lado que o trem ia chegar. Quando a Maria Fumaça apontava lá longe na curva, apitando e soltando aqueles tufos de fumaça branca, o povo se alvoroçava, alguns até batiam palmas! Impressionante!


Então, todo cheio de pompa, o “chefe” da Estação em seu uniforme imponente e pose de autoridade máxima, seguia quase que marchando para a ponta da plataforma, carregando um grande aro que parecia ser uma buzina. E quando a Maria fumaça se aproximava da plataforma, batendo um sino, o povo recuava e dava para ver o “chefe” da Estação trocando aquele aro com o maquinista, que lhe jogava outro, ainda com o trem em movimento. Era uma cena até bonita de se ver. Tinham tanta prática na execução daquele ritual, que nunca ninguém viu o “chefe” deixar o aro cair no chão.

Naqueles tempos o povo era simples, mas muito respeitoso. Quando o trem parava, primeiro se esperava os passageiros desembarcarem, para depois, começar o embarque de quem aguardava na plataforma. E havia ordem; primeiro as mulheres, as crianças e os idosos, que tinham preferência nos assentos livres. E se não houvesse bancos livres, as pessoas mais jovens cediam seus lugares. Aliás, havia os vagões de primeira classe com os famosos vagões de luxo, com suas belas e confortáveis poltronas estofadas e reclináveis, além do luxuoso vagão restaurante, sempre ocupados pelos passageiros mais abastados. Mas o trem era um sistema de transporte bem democrático e havia também os de vagões de segunda classe, com bancos de madeira sem forração. Como nossa família era numerosa, sempre viajávamos de segunda classe, que custava a metade do preço. Nunca reclamamos disso. O nosso negócio era andar de trem e ponto final.


E igual toda criança, eu e meus irmãos queríamos viajar sempre na janela, mas como não cabia todo mundo ao mesmo tempo, era preciso tirar “par ou ímpar” e ir fazendo o revezamento entre os pequenos. E mal o trem partia, lá vinha o homem de quepe e do paletó branco, empurrando um abarrotado carrinho de guloseimas pelo corredor. E ia anunciando e mostrando as famosas “manzanas argentinas”, biscoitos de água e sal, de polvilho, coxinhas, pastéis, pirulitos coloridos, guaraná Maçã e Sodinha. Logo atrás vinha o guarda, pedindo o bilhete e picotando a passagem de cada um. E não demorava muito, lá vinha outro homem de uniforme, com um carrinho cheio de revistas e outras publicações. Como as viagens eram longas, todo mundo acabava comprando alguma coisa prá matar a fome, a sede ou o tempo.


Quando o trem parava na estação seguinte, aparecia nas janelas uma fila de vendedores de sorvetes, amendoim, pipoca, suspiros, algodão doce, maria-mole, pedaços de bolos e cremes. Viajar de trem para nós, era um programão e tanto, e ficar na janela, tomando vento no rosto, nem se fala. Nas curvas, a gente via lá na frente a valente Maria Fumaça puxando aquela fila de vagões, apitando, e o povo nas casas próximas da linha férrea, saía nas portas, ou se debruçava nas janelas, acenando, dando tchau para os passageiros. Eram tempos inocentes e felizes.


Chegando ao destino, lá estavam os nossos parentes nos aguardando, acenando na plataforma de embarque e desembarque, porque já haviam recebido com certa antecedência, uma cartinha ou um telegrama, avisando o dia e o horário da nossa chegada. Passar um telefonema avisando da viagem, era coisa de gente rica. Naqueles tempos o povo era mais feliz, as famílias eram mais unidas. E o transporte ferroviário ajudava manter viva, a tradição dos parentes se visitarem com mais regularidade. A velha e valente Maria Fumaça cumpriu bem esse papel. Ela podia ser até lerda como dizia o povo, mas que era elegante e charmosa, isso até hoje, ninguém pode negar. Semana que vem tem mais. Até lá.

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