POESIA
O eu nosso de cada dia
O eu nosso de cada dia
Álvaro de Campos, o poeta que constata que não é aquilo que desejava ser, analisado por três criações suas: ‘Cruzou por mim...’ — poema sem título —, Aniversário e Tabacaria
Álvaro de Campos, o poeta que constata que não é aquilo que desejava ser, analisado por três criações suas: ‘Cruzou por mim...’ — poema sem título —, Aniversário e Tabacaria
Por Zé Renato
Finalmente Fernando Pessoa está onde deveria figurar: no panteão dos maiores nomes da literatura mundial de todos os tempos. Custou tornar-se um cânone em face da língua materna e da condição geopolítica de seu país de nascimento. Sofreu por isso: sabia que era gênio e não foi reconhecido em vida como tal. Possivelmente, nascido britânico, de língua inglesa, ou ao menos tivesse escrito e publicado toda sua criação nesse idioma, não há dúvidas, sua situação era outra.
O poeta trazia consigo uma peculiaridade que também o fez único: seus heterônimos. Dentre os gigantes das letras não há mais nenhum caso cuja criação se desmembrasse em mais de uma centena de personalidades poéticas como ele. Dentre suas personas literárias destacam-se, por serem as mais conhecidas talvez: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares.
Atendo-nos especificamente a Álvaro de Campos, verificamos uma obra calcada em temas que nos serão apresentados mais tarde por filósofos como Heidegger e Sartre e, pouco antes, por Nietzsche e Kierkgaard. As questões suscitadas pelo poeta — esse heterônimo em particular — dizem respeito à existência, seus dramas, desassossegos, angústias e dores cotidianas, as quais nos obrigam a olharmos para nós e constatarmos nossa insignificância em razão de uma vida nadificada. Da pena de Álvaro de Campos brotaram três criações magníficas: “Cruzou por mim...”, poema sem título, Aniversário e Tabacaria.
Nessa trindade é possível verificarmos um sujeito cindido, ontologicamente fraturado, vazio e angustiado, contendo a frustração de não ser; ao mesmo tempo em que é detentor da lucidez de saber que não se é. No primeiro ele nos joga como espectadores de uma cena cotidiana, aparentemente banal: dois homens se encontram, um é qualquer um, o outro, um pedinte “que tinha os olhos tristes, pedinte por profissão” que ao pedir esmola é atendido. Todavia, ao fazê-lo, o homem dá-lhe daquele bolso no qual tinha pouco. Não colocará as mãos na algibeira onde traz mais dinheiro. Ao conceder-lhe uma mísera moeda, alivia a consciência pseudocristã e segue em frente. Certo de que “fez o bem”. Todavia, Álvaro de Campos nos alerta que ser “vadio e pedinte” não o é no sentido literal:
“É estar ao lado da escala social
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida...
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso sempre.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a Humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão para isso supor”.
É possível afirmarmos que “ser vadio e pedinte” é viver à margem do estabelecido, moral e socialmente; para tanto, o poeta apresenta antíteses socioeconômicas do mundo contemporâneo. “Pessoas sociais dos novelistas” cujo enredo é determinado de antemão nesse quadro sócio-moral de supostas etiquetas e comportamentos de marionetes. Conclui a estrofe afirmando que sempre há uma “razão” a fim de submeter os quereres e opções que fujam à regra. Ser vadio para o poeta “é ser isolado na alma”: saber-se só, no sentido de uma incomunicabilidade que transcende ao verbal, dá-se no plano do sentir, do indizível. “É ter de pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”.
Depois de ironias com clássicos como Dostoiévski e Górki, voltados às temáticas sociais, ele se autoironiza: “Coitado do Álvaro de Campos...”, para, enfim nos lembrar: não adianta nos escondermos de nós, fingindo dores e preocupações que se dão somente no plano da literatura. Não adianta nos autopiedarmos. Resta a lucidez: “Nada de estéticas com o coração...”. Não há como fugir. A mesma dor reascende no poema “Aniversário”. Escrito em três tempos — passado, presente e futuro —, tem como metáfora a janela, cara ao poeta, no sentido de opor real e ideal, sonho e vigília, realidade e ficção, próprios desse humano cindido; e parte de mais uma cena do cotidiano, a passagem natalícia.
“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
A felicidade é um sentimento idealizado. Para enfatizá-lo, o poeta reforça como um dogma: se é feliz e pronto. Ironicamente, continua: “De não ter as esperanças que os outros tinham por mim”. No presente vem a lucidez:
“Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!... (Nem o acho...)”
A passagem natalícia é a metáfora da janela, a cisão entre ideal e real. Hoje, adulto, lúcido, não possui a pueril esperança idealizada dogmaticamente.
“O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mimmesmo como um fósforo frio...”
No presente, o poeta se vê desesperançado, consciente, finito, descrito através da umidade a corroer a casa — ele próprio —, bem como as ervas daninhas a cobrir seus sonhos — a lucidez latente.
Enfim, um mero sobrevivente sem sonhos e utopias, ilusões ou esperanças; e conclui: “Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada”. A cisão ontológica e a existência angustiada adquirem dimensões colossais no “épico” Tabacaria. Síntese das angústias cotidianas, um perfeito raio X do humano, em meio a todas as suas vilezas, mazelas e fracassos. Um amargo testamento de um modelo de existir próprio da grande maioria. O poema se inicia de forma dramática, nos apontando o cerne do sofrimento:
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
A dor da consciência de se saber nada, de não poder sê-lo, ética, espitemológica e moralmente. Muito embora sonhe em ser. A janela, novamente como metáfora, separa real e ideal, sonho e vigília, querer e poder:
“Janelas do meu quarto.
Do meu quarto de uma dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem que é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras de dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada...”
O saber no sentido do senso comum e na visão metafísica-ontológica sobrepostos, prenunciando Heidegger! As maravilhosas antíteses, como em Aniversário, a fim de ilustrar a tragédia humana. Mais adiante surge a tabacaria como uma referência da realidade, opondo-se à ilusão do idealizado:
“A Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro...”. E continua o bardo: “Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram, desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até o campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe? nem um...”
Apresenta a dicotomia tudo/nada de forma dialética, reflexiva. Refuta os ensinamentos de sua contemporaneidade. A ida ao campo permite supor que seja uma crítica ao Romantismo, ao contato bucólico como solução dos dramas humanos. Aqui, contudo, em vão. Novamente a janela, ao real: o que pensar? No sentido metafísico, a impossibilidade de tantos serem a mesma coisa; e aqueles que porventura sejam vistos como gênios, não o são.
“O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez...
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre... o que não nasceu para isso... o que tinha qualidades...
Crer em mim? Não, nem em nada...
E o resto que venha se vier ou tiver que vir ou não venha...
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira...”
Novamente ideal e real em oposição, bailando numa corda que oscila entre a frustração e a apatia, o conformismo e pseudorrevolta. Apresenta-se a triste constatação de que não se é aquilo que desejaria que fosse. E escancara a dor e a descrença. Mas, acima de tudo, o inconformismo! O poeta percorre o tempo na busca de respostas ou na ilusão de encontrar algo ou alguém, que seja capaz de desdizê-lo; porém, suas certezas se confirmam. Mesmo que se queira fugir do drama, ele continua a existir, como a analogia do rabo do lagarto. E continua a inserir dados ao drama, discorre acerca de sua dor — possivelmente a de não ter o reconhecimento merecido e sabido por ele —, de sofrer com uma situação comum a todos, no entanto, percebida e sentida somente por ele. É plausível pensar a possibilidade de que mais alguém passe a ter lucidez.
Mas a certeza de tudo cai sobre si: “E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto...”, seu drama é exclusivo. Lúcido, somente ele percebe; o mundo continua a girar. Todos continuam a fazer as mesmas coisas, sem dramas ou sofrimentos. Apenas executam. Isso é uma solução? Óbvio, não é. Trata-se apenas do descortinar o vazio da vida inautêntica, dito pelo filósofo. Podemos nos esconder de nós e da vida, nos alienarmos, manifestarmos uma ilusória alegria, buscando supostas qualidades atribuídas por nós ou mesmo por outrem; todavia, a dicotomia real e ideal mais hora, menos hora, chegará. Nossa tragédia é cotidiana. Não adianta nos escondermos em “Eus”.