OPINIÃO
O que vale para a mães de reborns, vale para os Legendários
O que vale para a mães de reborns, vale para os Legendários
“... muitos dos valores da pauta dos costumes não são hoje tão evidentes."
“... muitos dos valores da pauta dos costumes não são hoje tão evidentes."
Meu último texto se ocupou das mães de bebês reborns. Ponto positivo para mim: o texto foi bem lido. Ponto negativo para mim: bem lido não seria a palavra certa.
Uma amiga fez uma deliciosa ponderação. Não seria essa enorme repercussão um método? Uma forma instrumentalizada (de quem?, pergunto-me eu, das grandes mídias?, do Estado?, das Redes?) de nos manter alienados dos assuntos sérios?
Concordo quando ela diz que há assuntos sérios. Mas quem disse que esses comportamentos não são, culturalmente falando, um reflexo também sério das mudanças dos nossos tempos?
Antes, uma explicação.
Quando escrevi que me espanto com os assombros exacerbados das pessoas em relação às mães de reborns, eu apenas tentava rastrear os limites entre as liberdades individuais e os protocolos sociais e coletivos de controle. Nada mais. O que já não é pouco.
Voltando à minha amiga, ouso dizer que de alguns comportamentos atuais - tidos como estranhos - jorram significados muito mais profundos do que parecem à primeira vista.
Dessa vez não usarei as mães de reborns como exemplo. Prefiro uma passagem simplificadora: os Legendários.
Retomo minha explicação anterior: o que vale para as mães de reborns, vale para esses homens que se aventuram por montanhas. Eles são livres para subirem onde quiserem, acampar onde bem entenderem e gritar “Uuu!” à vontade. Desde que respeitem as leis, é legítima a romaria. Viver aguardando a aprovação do outro é o mesmo que solapar os méritos da individualidade.
E o que os legendários nos ensinam?
Duas coisas. Primeiro, eles nos lembram que muitos dos valores da pauta dos costumes não são hoje tão evidentes.
Se observados com atenção, o ato de ir para o meio do nada, de se debruçar sob o silêncio (ou o peso) da Natureza, numa busca espiritual (palavra que merece desvelo não só no seu sentido religioso), desejando uma transformação que dê sentido à vida, não é algo novo.
Nas décadas de 1960 e 1970, era comum jovens saírem de casa rumo a jornadas semelhantes. A náusea existencial, tratada por Sartre, sempre fará parte do homem, esse ser inquieto e incompleto.
O que chama a atenção é o fato de os Legendários, em tese, pertencerem a grupos de ideais conservadores. Antigamente, a “peregrinação” não era estimada pelos tradicionalistas. Resguardadas as proporções culturais de cada época e cada nicho, sair ao encontro de si era uma atitude à esquerda.
Hoje, não há surpresas. Vemos pessoas marcadas pela defesa dos ideais da esquerda se comportando igual a conservadores natos. São tão regrados e metódicos em suas rotinas de crenças que um monge beneditino se impressionaria.
Byung-Chul Han, em seus livros, ao analisar as mudanças culturais, impede que se escape de um elemento central. O problema da referência.
Se as gerações anteriores caíam na estrada para se distanciar - ou até romper - dos modelos patriarcais que lhes desagradavam, as atuais se arrastam por uma sensação de vazio pelo motivo oposto: falta de referenciais (seja de direita, seja de esquerda).
O que ocorre com os Legendários resvala, numa imitação inconsciente, com a prática de outrora.
A direita, que condenava o universo das incompreensões nauseantes de quem perambulava para refletir sobre o eu e reconhecer um grupo em que esse eu se integrasse num nós, não estaria, agora, contingenciando as mesmas singularidades habituais da esquerda?
Enfim, minha amiga pode ter razão. Embora não apenas como ela imagina.
Em seu excelente No Enxame (Vozes, 2018), Han tece considerações certeiras. Para ele, o enxame da internet transforma a pessoa em destinatário e remetente, e sua massificação anula o indivíduo num anonimato negativo.
Há, sim, nesse enxame, manifestações externas de controles. Mas a eficiência da autoexposição e da autoexploração exerce sobre nós singular força coerciva.
No enxame digital, a solidão (diante do seu computador, na sua casa) é uma ilusão de liberdade, um apagamento do eu e do nós.
Desnecessário presumir um rigoroso controle alienante da internet, se estamos nós a anular nossa consciência gratuitamente.
Gil Piva
O texto é de livre manifestação do signatário que apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados e não reflete, necessariamente, a opinião do 'O Extra.net'.