ENTREVISTA EXCL

Literatura universal com os pés no Brasil

Literatura universal com os pés no Brasil

Em entrevista exclusiva ao Cultura!, o autor moçambicano Mia Couto, sempre presente na lista dos críticos para o Prêmio Nobel de Literatura, fala de seu estilo e da influência da literatura brasil

Em entrevista exclusiva ao Cultura!, o autor moçambicano Mia Couto, sempre presente na lista dos críticos para o Prêmio Nobel de Literatura, fala de seu estilo e da influência da literatura brasil

Publicada há 8 anos


"Por causa da influência do meu pai, tomei contato com Manuel Bandeira, Clarice Lispector e tantos outros. O meu chão literário é brasileiro."



Por Jacqueline Ruiz Paggiorno


Consegui! Esse é o verbo adequado. É solicitado que não se inicie um texto com verbos. Além disso, o bom senso também pede que não se tente aquilo que parece utópico. Todavia, “Ecce Homo”. Na adolescência sonhava encontrar alguns cantores de rock; a maturidade me fez mais letrada: prefiro agora conhecer mais de perto aqueles que inventam sonhos e nos apresentam as palavras do seu mundo. O meu predileto é o escritor africano de maior dimensão mundial. Em minha opinião, o mais brasileiro dos escritores africanos, cuja pena traz consigo o sertão roseano e as sonoridades e belezas pantaneiras do Manoel de Barros. Futuro Nobel de Literatura, exemplo de integridade e ética. Para os leitores do Cultura! apresento o escritor  moçambicano — e brasileiríssimo — Mia Couto.


Você sempre procura deixar claro que não é escritor, mas que está escritor. Com tantas obras publicadas, prêmios recebidos e com o reconhecimento mundial de sua produção literária, como você se define atualmente? 

Eu acho que mantenho essa resistência a “definir-me”. Na medida em que as definições apelam para uma espécie de “essência” natural. Somos feitos de uma mistura de dons e de circunstâncias, de escolha e de acidentes. Estou perante a literatura — esse grande pilar da minha identidade — como estava há quarenta anos. Com a mesma perplexidade, os mesmos receios, a mesma ingenuidade.


Você participou da luta pela independência de seu país e militou na Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e depois se afastou da militância ativa. Como foi essa experiência e como é sua atuação política hoje? 

Foi muito intensa, era essa entrega a uma causa que me fazia despertar todas as manhãs. Não fui apenas de um partido, fui partidário. E isso trouxe-me uma certa incapacidade de olhar o mundo com a sua profunda diversidade. Deixei de ter um partido político. Mas mantenho as minhas opções éticas e o mesmo empenho em mudar o que é injusto.




Você fala do Brasil e dos brasileiros de uma forma apaixonada, e que nosso país se aproxima muito de Moçambique — “sofremos das mesmas doenças e temos os mesmos remédios”. Temos muitos aspectos históricos, políticos e econômicos que nos aproximam e que nos identificam, mas, para além disso, o que o encanta em nosso país? 

Encontro uma mesma atitude que está inscrita na canção “levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”. A habilidade de converter o choro em riso, de produzir alegria e canto mesmo no maior desencanto. Infelizmente, nos últimos tempos essa capacidade tem sido atacada. Uma prova que também essa ideia do que somos é construída e mistificada. Mas ela encontra raiz num capitalismo que se instalou por delegação, por colonização e que foi capaz de desumanizar as relações de subordinação, mas não as vazou do seu caráter pessoal.


 Assim como em Moçambique, nossa democracia é recente e ainda carrega os traços nefastos da corrupção. Como você avalia os episódios da política tanto Brasil quanto em Moçambique? 

Eu acho que há mistura de tendências. Estranho que o Brasil esteja agora a “descobrir-se” corrupto. Há muito que se sabia quanto a corrupção existia e era sistémica. Existe um lado positivo que existe, tanto em Moçambique quanto no Brasil, coragem para trazer à luz os “culpados”. Desde que essa “purificação” não seja manipulada politicamente, desde que essa intervenção não assuma apenas o caráter de campanha, mas se torne parte do sistema de governação. Desde que os órgãos de informação não se convertam em partidos políticos encapotados.


Seu pai e sua família são uma referência muito forte e presente em sua obra. O que você poderia nos contar sobre essa influência? Poderia também falar sobre a Fundação Fernando Leite Couto? 

Meu pai era um poeta. Mais do que isso eu nasci numa casa em que vivia a poesia. Somos três irmãos, todos homens, e brincávamos que havia uma irmã oculta que era a poesia. Mais do que uma arte literária, essa herança deixou-nos um modo de ver o mundo e de ser sensível aos outros. O meu pai dedicou grande parte da sua vida a apoiar jovens que sonhavam ser escritores. Quando há dois anos atrás ele morreu, recebemos centenas de mensagens de jovens que manifestavam a sua gratidão pela ajuda que ele lhes havia dado. Por isso decidimos criar uma Fundação cultural que continuasse a sua obra junto dos candidatos a poetas e escritores. Essa Fundação tem agora um ano e já se impôs como uma referência da cultura na capital de Moçambique. Todas as semanas temos eventos, oficinas, exposições e encontro para debate.


A sua infância é também outra importante referência. Você diz que “a infância é o segundo ventre e a família é o terceiro”. O que poderia nos dizer sobre a sua infância e como você percebe a infância na modernidade? 

A minha infância foi muito privilegiada. Eu não tinha medo, nem a limitação do espaço, nem barreira para sonhar. Vivi numa pequena cidade cercada pela savana africana e a sensação física de infinito alimentou o sentimento de ausência de limite que é inerente à infância. Éramos donos da rua e regressávamos a casa sem termos que, de dez em dez minutos, prestar contas de onde estávamos e o que estávamos a fazer. Os meus filhos já cresceram num mundo diferente. Perdeu-se muito dessa apropriação do mundo real, ficou-se limitado a uma fortaleza obcecada pela segurança. Mas ganharam em outras coisas, na instantaneidade, na partilha de informação para além dos limites do tempo. Eu acho que fui mais feliz. E infelizmente, eles concordam comigo. Será verdade?


A poesia é sempre presente em sua prosa e as palavras, que você descortina em seus textos, estão repletas da marca da oralidade. Como você se sente ao ver sua obra transposta em filme? 

Na verdade, eu não consigo sair de uma certa ambivalência nesse domínio. Por um lado, espero que o filme seja distante, tenha outra linguagem, seja radicalmente uma outra coisa. Mas ao mesmo tempo mantenho uma esperança que o livro esteja ali presente, que haja uma relação de fidelidade. Tenho que aprender a separar-me de algo que é como um filho que sai de nós e caminha pela estrada do mundo. Tenho que aprender a ser pai sem ter expectativa de posse.


O nome de seus personagens não parece ser escolhido ao acaso, eles lhe garantem mais do que identidade. Em duas afirmativas do livro Mulheres de Cinza — “Na barriga da mãe, não se tece apenas um outro corpo. Fabrica-se a alma, o moya. Ainda na penumbra do ventre, esse moya vai-se fazendo a partir das vozes dos que já morreram. Um desses antepassados pede ao novo ser que adote o seu nome... Atribuir um nome é um ato de poder, a primeira e mais definitiva ocupação de um território alheio...” —, você revela que, mais do que retratar a tradição, você está impregnado da cultura africana. Você concorda com essa afirmativa? Como acontece o processo de criação? 

Não me interessa uma abordagem culturalista, uma aproximação africanista no sentido do étnico ou do exótico. Na maior parte das regiões de Moçambique as pessoas vão ganhando nomes diferentes ao longo da sua vida. Eu acho isto fascinante. Não porque é curioso, ou típico. Mas porque levanta a questão universal que a nossa relação com os fundamentos da nossa identidade que pede, quase sempre, elementos de estabilidade e âncoras definitivas.


O sertão de Guimarães Rosa não é físico nem geográfico, ele é poética e literariamente construído no imaginário que o escritor habilmente nos traduz. Sua Moçambique segue o mesmo padrão? 

Sim, eu creio que essa coincidência vem da poesia como ponto de partida da prosa. A escrita apela para uma relação com a interioridade, com a transcendência e com o que não é imediatamente visível. Os lugares interessam apenas como convite para uma viagem. Ou nas palavras de Guimarães: para uma travessia.


A propósito, inúmeras vezes você menciona que há “convergências significativas” entre seus textos e os do escritor Guimarães Rosa. Seu conto Nas águas do tempo do livro Estórias abensonhadas (1994) se aproxima muito do conto do escritor mineiro A terceira margem do rio do livro Primeiras estórias (1962), e sua palestra “O sertão brasileiro na savana moçambicana”, proferida na cerimônia por ocasião de sua nomeação como correspondente da Academia Brasileira de Letras (2004), demonstram que Mestre Rosa o influenciou grandemente e para além do estilo. Além de Guimarães Rosa, quais os autores brasileiros o encantam e permeiam sua escrita? 

Muitos e quase to- dos da poesia: Drummond, João Cabral, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manoel de Barros. Esse são os que mais me ocorrem. Mas p o r causa da influência do meu pai, tomei contato com Manuel Bandeira, Murillo Mendes, Vinicius, Clarice Lispector e tantos outros. O meu chão literário é brasileiro. 


 Em novembro de 2015 você esteve no Sesc de São José do Rio Preto. O evento inicialmente era previsto para 300 pessoas e foi anunciado na página do Facebook da entidade. A confirmação de pessoas para o evento ultrapassou o limite inicial — cerca de 500 pessoas confirmaram — e o espaço para sua palestra foi alterado. Mais de 800 pessoas lotaram a quadra do Sesc para vê-lo. Lembro-me de você dizer que era a primeira vez que falava para uma plateia daquele tamanho. Você se surpreendeu com isso? 

Como você lida com a “fama”? Não lido. Ela não existe: é assim que resolvo. Porque a fama e o sucesso são construções com que tenho uma enorme antipatia. Sobretudo hoje que elas resultam quase sempre de operações de marketing e de mercado. É evidente que fico muito feliz que o número de pessoas que toma contato com a minha obra seja vasto e variado. Mas não me meço por aí. Prefiro o meu recanto familiar, que preserve intimidade e privacidade de ambos os lados. O que proponho à editora é que organize eventos mais pequenos em que se possa conversar com mais tempo e mais proximidade. Nem que eu tenha que repetir o mesmo lançamento em dias diferentes.

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