O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Por muito tempo achei que a ausência é falta/E lastimava, ignorante, a falta/Hoje não a lastimo/Não há falta na ausência/A ausência é um estar em mim/E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços/que rio e danço e invento exclamações alegres/porque a ausência, essa ausência assimilada,/ninguém a rouba mais de mim.
No poema ele deixou registrado não somente o sentimento de ausência, por falta de algo ou alguém importante, que tomou conta dele por inteiro, mas também que aprendeu a viver com essa lacuna em sua vida.
É uma emoção, um sentimento particular, muitas vezes incompreendido pelo outro, quando a falta de algo simples parece uma questão insignificante, até boba, ao julgamento de quem não viveu a situação que resultou na sensação de ausência.
Noutro dia, sentado na varanda da casa de um amigo, em determinado momento do bate-papo, ele me perguntou se conhecia um filme antigo chamado “Reencarnação”. Respondi que não. Assim, ele iniciou a saudosa narrativa que segue.
Contou que em uma aula na escola da pequena cidade onde morava, há muito tempo, época do ensino médio, chamado de colegial à época, a professora de História tinha passado um filme na sala de aula que falava sobre o Egito Antigo para ilustrar o conteúdo que estavam estudando.
Reencarnação, naquele tempo, disponível em fita de vídeo, era um relato sobre a vida da filha de um arqueólogo possuída pelo espírito de uma antiga rainha egípcia, cuja história foi totalmente apagada pelos antigos, inconformados com as enormes iniquidades cometidas pela soberana.
O terror, entretanto, não permaneceu apenas no gênero do filme, ultrapassou a tela do televisor de tubo, alimentado pelo vídeo cassete moderno, preso dentro de uma grande no alto da parede da sala de aula. Veio para a vida real, quando, a trinta minutos do final do filme, meu amigo e alguns colegas precisaram deixar a sala.
Nada de sobrenatural, apenas sobre-humano, pois a partida estava além do controle daqueles adolescentes. Moravam no sítio e o ônibus havia chegado para leva-los de volta a suas casas. Sem qualquer suspense, o horário do itinerário só não coincidiu com o do término do filme.
Saíram da sala como se uma força magnética estivesse puxando-os para o lado oposto ao da porta, em direção à televisão onde o filme continuava, e no momento de maior mistério da história. Foram salvos do magnetismo diabólico pela heroína, protagonista das aulas de História, a professora, que disse com a voz firme e em bom tom: “Vão logo!”.
Em seguida, ouviram a buzina do ônibus chamando por duas vezes seguidas. E foram para casa angustiados. Meu amigo, entre muitos sentimentos, decepcionado, nervoso, revoltado e curioso, tudo junto e misturado, jamais esqueceu o ocorrido e sempre quis ver o filme até o fim, me confessou em sua narrativa.
Mas houve um final. Aliás, um não, dois. O da história do meu amigo, me contando eufórico que, depois de anos de pesquisa, conseguiu encontrar o almejado filme na internet e assistir ao final da história da rainha egípcia. Viu até os últimos caracteres com os nomes do elenco, produção e colaboradores. Desta vez, sem buzinas.
O fato mais interessante da história toda, reside na falta que fez para ele não ter terminado de assistir ao filme. Parece ter ficado uma lacuna na própria história, um vazio, preenchido quando finalizou a tarefa interrompida repentinamente anos atrás.
Por mais estranho ou irrelevante que pareça, é o enredo de muitas outras histórias de tantas outras pessoas, até do Carlos Drummond. Virou poema, nesse caso, e, provavelmente, o tema tenha se transformado em livros, filmes, obras de artes e sessões de terapia.
Concordo com Drummond, sem petulância, atrevimento seria discordar. Ausência não é falta, ausência é aquilo que a falta nos provoca. A falta é fato, certo ou errado, consciente ou inconsciente, proposital ou involuntário. A ausência é sensação, sentimento, emoção. A falta é externa, a ausência interna.
Ausência significa carência, escassez, distanciamento, carência do que sinto falta, escassez de outro sentimento e distanciamento do eu presente, e tem origem no latim “Absentia”, de “Abens”, o que está em outro lugar. Esse lugar pode ser outro espaço ou outro tempo, com certeza, onde não se pôde chegar.
O que falta é o que não está completo, totalizado, terminado. Um filme, um livro, uma obra, um encontro, uma história. Falta vem do Latim “fallita”, uma forma de “falsus”, “falso”, do verbo “fallere”, “faltar, enganar, falsificar”.
Talvez seja falso, enganador, porque provoca culpa, palavra que também é originária do latim, significando “falta, erro, defeito”. A culpa é da mesma forma sentimento. É sustentado em uma suposição de erro, ter faltado alguma ação, infligir defeito próprio, tendo ou não existido.
Não se trata apenas de saudade, da vontade de querer arrancar uma página da vida, como cantam Chrystian & Ralf. Ainda que fosse possível fazê-lo, o livro ficaria incompleto, faltando página, porque a saudade é amiga da solidão e a ausência é parente do vazio.
Se for possível, continue tentando achar seu filme para assisti-lo até o final. Caso não seja, siga o conselho de outro poeta, o inglês Thomas Hardy, quando disse que “A felicidade não depende do que nos falta, mas do bom uso do que temos”.
Não o faça amparado no pessimismo característico de Hardy, pratique-o com base na decisão de Drummund, sem querer resolver o insolucionável e passar a vida tentando preencher uma lacuna que não está mais aqui e agora, complete-se do que tem, preencha-se de si mesmo e permaneça em você.
Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com