Domingo, um entre os dois dias que não terminam em “feira”, é o único em que vou à feira. Não chego como a maioria, quando o sol está raiando. Vou um pouco mais tarde, depois de tomar café, ver TV, verificar o jornal, ler o que mais chame à atenção e checar as velhas novidades pelo celular.
Gosto mais de passear na feira do que fazer compras. Vejo tudo, encontro conhecidos e garimpo curiosidades do comportamento humano. Em época de coronavírus, o engraçado, se não fosse trágico, são os homens do grupo de risco com as máscaras no queixo.
Como você já deve saber, isso é o mesmo que usar camisinha no escrotal. Também é um claro exemplo do marketing negativo, uma propaganda às avessas, cuja campanha foi desenvolvida pela Agência Palaciana Aurora, concebida e difundida pelo próprio CEO (do inglês Chief Executive Officer – Chefe Elocutivo Ontodiota, em tradução livre, leve e solta) e assimilada e replicada pelos seus sequazes crentes.
De volta à feira, quando vou às compras, é para levar um queijo fresco, verduras e potes de jurubeba em conserva. Essa, uma das poucas amigas que permaneceu em minha companhia desde a época de escassez alimentar particular, mais conhecida como fome, ao lado da polenta, agora mais consistente e substanciada com outros ingredientes.
Foi depois de um dia desse de compras, já indo embora, que ouvi a propaganda vinda de um alto-falante, narrada pelo locutor-empresário, cujo texto dizia: “Bola vermelha do Homem-Aranha, azul do Baby Shark e rosa da Pantera Cor-de-Rosa”. Até aqui, não parecia haver nada de mais, a surpresa veio somente quando me aproximei e me deparei com a genialidade do marqueteiro autônomo. Não necessariamente nessa ordem.
Estacionada na esquina, uma caminhonete verde-desbotado, em cima de sua cabine o colaborador alto-falante e a carroceira lotada de bolas coloridas, com carga que ultrapassava em muito a altura do veículo. Na porta direita aberta, do lado da calçada, com o pé no estribo, o vendedor-locutor proclamava astutamente sua propaganda.
A astúcia a que me refiro, explicarei agora. Ao me aproximar do veículo, observando as bolas amontoadas, sustentadas por uma fina rede de náilon azul, não vi estampada nelas qualquer dos personagens apresentados. Nem Homem-Aranha, nenhum Baby Shark, sequer Pantera Cor-de-Rosa.
O que eu vi foram apenas bolas vermelhas, azuis e cor-de-rosa decoradas por inúmeros traços em formatos ondulados, que sobrepunham a cor base com outras cores que a contrastavam, ao mesmo tempo que combinavam. Os personagens estavam apenas na imaginação, minha e das crianças cruzando a rua com olhar fixo naquele festival de cores. Talvez maravilhadas ou, provavelmente, procurando por os personagens anunciados em alto e bom som.
A sagacidade é um dos sinônimos de astúcia. O que melhor se ajusta na situação, significando “Capacidade para depreender; Perspicácia; Facilidade para entender ou aprender alguma coisa; Agudeza de espírito”. Todos adjetivos dedicados justa e merecidamente por mim ao vendedor de bolas e marqueteiro quase profissional.
A inteligência, criatividade e poder de ilusão (como tem toda propaganda) divulgados no alto-falante eram tão convincentes que, mesmo não estando pintados nas bolas os personagens propagandeados, elas eram vendidas. Quem sabe eles não estejam escondidos dentro das bolas, deveriam estar pensando as crianças, já agarrando sua escolhida com extenso sorriso no rosto.
Como não só de bola vive o homem, tem outro exemplo de marqueteiro empreendedor, o homem do pão. Assim era chamado pela maioria, inclusive por mim, até saber o nome dele. Seu Samir, de origem libanesa, descobri mais tarde.
Moreno baixo, tronco largo, pouco preto raleado, de testa grande e animado, bem-falante e bom de conversa, exatamente como atesta o próprio nome. Seu estabelecimento comercial fica no quadrilátero entre duas avenidas movimentadas, cujo fluxo é interrompido, de quando em quando, pelas luzes vermelhas dos semáforos instalados diagonalmente em cada esquina.
Foi aguardando um deles abrir que vi Seu Samir se aproximando, o ainda Homem do Pão, oferecendo seu produto nas janelas de carro em carro, até chegar ao meu, levantando mais uma vez o guardanapo de pano branquíssimo que cobria a assadeira onde apresentava os pães enormes feitos em casa (mas na dele).
Quando chegou à minha janela, o vidro já estava abaixado, então foi oferecendo, mesmo antes do último passo: “Vai um pão quentinho e delicioso aí?” – e como cheirava bem. Deu água na boca. Por um segundo, pude imaginar a faca deslizando sobre o pão e a manteiga derretendo na fatia, soltando fumaça como nas propagandas de televisão.
“Quanto é cada um”, perguntei. “Tantos reais”, emendou Samir. “Não tá caro?” repliquei. Cinco segundos de silêncio e depois, sorridente, ele responde: “Também acho”. Como assim, pensei, ele concorda comigo? Então vou pedir desconto.
Mas não deu tempo, mal finalizei meu pensamento ele mandou esta: “Também acho, mas é minha mulher é quem faz os pães, assim ela quem põe o preço, e eu não vou discutir com ela.” Eu também não discutiria com a minha, por precaução, ele, imagino, por respeito à esposa, uma das características do povo árabe.
Seja como fosse, fato real ou estratégia de marketing, gargalhei e concordei com ele, afirmando que tinha toda razão. Paguei feliz pelo combo: pão, sorriso e aprendizado. Nessa altura, até achei barato. O conhecimento pode-se (note, é possível) adquirir com o tempo, a inteligência com estudo, mas a sabedoria é outra história.
Não tive tempo para conversar com o homem das bolas coloridas (ficou esquisito, mas vai assim mesmo). Já com o Seu Samir, conversei brevemente em uma ocasião e conheci parte da história de vida dele. Bastante interessante, aliás. Daria para escrever muitos outros textos.
De qualquer forma, seja pela oportunidade que tive, pelo esforço, criatividade e demais qualidades individuais que cada um deles certamente possui, não haveria maneira melhor de saudar os dois do que dizendo "Assalamu aleikum".
Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com