ARTIGO

Fahrenheit 451: uma sociedade que queima livros e a busca pela virtude

Fahrenheit 451: uma sociedade que queima livros e a busca pela virtude

Escrito por Gabriel Goes

Escrito por Gabriel Goes

Publicada há 4 anos

Por Gabriel Goes*

Em 1953, Ray Bradbury lança sua mais famosa obra: o romance distópico intitulado Fahrenheit 451. Diferentemente de seus irmãos de época e tema – romances de Huxley e Orwell – em Fahrenheit não encontramos uma sociedade muito diferente da que vivemos hoje. Sem tele-telas ou polícias de pensamento. Menos distópica, talvez. Mas ainda assustadora.

Na realidade construída por Bradbury, os livros são proibidos. O simples porte de uma obra resulta em duras penas, sinalizando o claro caráter autoritário desse governo. Seus agentes no controle dessa praga bibliográfica? Os bombeiros.

Nas aproximadamente 200 páginas do livro os bombeiros atuam botando fogo em todos os livros que encontram. O nome da obra vem da temperatura na escala fahrenheit em que os livros se tornam rapidamente em cinzas.

O plot da obra acontece quando Guy Montag, um dos tais bombeiros, começa a se questionar sobre o fascínio exercido por aquelas simples páginas de papel em algumas pessoas, as fazendo desafiar todo um governo extremamente forte e agressivo.

A jornada de herói a qual Guy é exposto faz com que ele mesmo se torne um opositor do regime do qual era funcionário exemplar. Infelizmente não são vistos muitos desses funcionários rebeldes no Brasil de hoje.

O mérito de Bradbury reside na sua capacidade de, em poucas páginas, construir uma sociedade preenchida apenas pelas amarras que o sistema político a ela inflige. A sensação de controle é evidente, e podemos senti-la na esposa de Guy, sempre dopada, ou no sumiço de sua jovem vizinha – uma dissidente mais preocupada com a própria virtude do que predisposta a ser parte do coletivo.

A queima dos livros ocorre principalmente por meio da denúncia feita por pessoas comuns, que já consideravam as obras como perniciosas, afinal, era isso o dito pela publicidade governamental.

Sem a pretensão de tecer uma crítica ao momento político – pois a ignorância enquanto instituição do brasileiro médio o acompanha faz séculos – o objetivo deste artigo é simplesmente externar a frustação de perceber que a sociedade brasileira “queima” livros todos os dias, quando abdica do conhecimento e da virtude. E, com algum grau de sorte, faz pensar que ainda existe solução.

Essa renúncia à companhia da sabedoria acontece quando um ilustre político se lança contra policiais num trator. Quando uma mulher tem sua morte saudada por ser oponente do atual governo, ou ainda quando um político tem uma facada desferida contra si. 

Tudo isso em nome da política. Palavra, aliás, que praticamente nenhum dos envolvidos nela e supostos politizados sabe definir. 

A selvageria que nos toma por completo resulta de uma cultura popularesca em que o conhecimento é reprimido, e a ignorância valorizada, enquanto lentamente a elite política se aproxima cada vez mais do poder encontrado na distopia de Bradbury.

Com pessoas a cada instante mais vazias, torna-se exponencialmente mais fácil que um governo totalitário – soba égide da esquerda ou direita, nomenclaturas que se tornaram inúteis aqui –assuma a responsabilidade de reger a nossa vida, escolhendo ele, com sua postura divinal, o que devemos ou não fazer.

É com pessimismo que se deve olhar a situação atual não do ocidente, mas de um contexto um pouco menor: o brasileiro. Nos encontramos num estado de agitação inútil, uma letargia que apenas pode resultar em fracassos retumbantes, como tem sido há quinhentos anos. 

As enormes potencialidades que aqui existem se esvaem, conforme a razão é rejeitada e a passionalidade entronizada. Entretanto, o momento não é de simples constatação da desgraça inevitável. Devemos voltar nossos olhos para a única maneira de sairmos do buraco em que estamos: a valorização da virtude e da razão.

A educação do intelecto e das paixões deve ter prioridade sobre todo o resto. Devemos fugir da periferia do conhecimento à qual somos empurrados – tornando-nos sempre especialistas em um grau menor da verdade, até que já não a reconheçamos – para podermos impedir o colapso de tudo que valorizamos.

É imperativo que deixemos de lado as limitações do sentimento banal, lutemos contra a atrofia do pensamento, e não esqueçamos da humilitas – o caminho de autodepreciação dos pensadores medievais, no qual descobriam a máxima socrática de que nada sabiam. Mas buscariam com a própria vida, o saber.

Devemos “desmassificar” as massas. Por meio da linguagem e da palavra, devemos buscar não a racionalidade dos jacobinos – invejosos, atacando até mesmo às coroas, batinas e bandeiras – mas a compreensão coletiva de que não podemos ser crianças mimadas que esperam sentadas por deleites gratuitos ou adultos mal-educados, que pensam que existem por si mesmos.

Devemos impedir que os livros sejam queimados.


* Professor de história da rede pública municipal de General Salgado


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