ARTIGO

Os olhares que se veem

Os olhares que se veem

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 3 anos

Sabemos que existe diferença entre ver e olhar. Enquanto ver refere-se à capacidade física, olhar está ligado à habilidade intelectual-cognitiva. Todos veem de maneia igual, a não ser que haja algum problema em nossa máquina humana. Olhamos de formas diferentes. 

O olhar, substantivo, insubstituível, difere cada ser e em cada um deixa ver o eu que só quem sabe olhar enxerga. Olhar, verbo, sem verbalização, difere o ser “olhante’ daqueles meramente “enxergantes”.   

A rotina involuntária é uma doença grave que afeta nossa visão drasticamente, quem dirá o olhar, mais sensível à luz e às sombras. Há indivíduos que habitam a mesma cidade e a veem de forma diferente. Se forasteiro, é capaz de ver outra cidade no seu olhar. Normalmente melhor do que aqueles que nela vivem, pois, despidos dos preconceitos e afetações patrícias, enxergam as qualidades ofuscadas pela vida ranzinza dos moradores. Há de transitar trinta anos pela mesma rua e só no trigésimo primeiro notar que existe uma residência sobre aquela loja.

As profissões enraízam suas competências no ser e moldam nele o olhar. As pessoas tendem a olhar de acordo com suas ocupações. As lentes da experiência focam no interesse da mente treinada para seu ofício.

Ana Clara trabalhava havia mais de vinte anos em consultório odontológico. Começou no ofício desde muito nova, quando isso era possível, na época em que trabalhar desde pequeno ainda não deixava ninguém burro, nem destruía a infância pobre, tampouco empobrecia a rica. O fato é que para qualquer pessoa que olhava, Ana via uma boca e comentava sobre os dentes, problemas de mordedura, tipos de queixos ou alguma outra anomalia ou problema que tivesse relação com a arcada dentária.

Durval dava aulas de português, sofria com o uso não convencional do nosso idioma. As frases não elaboradas de acordo com a norma culta cegavam-no, só conseguia ouvir o falante. Certas colocações doíam no seu estômago. Quando encontrava alguém com quem fosse falar, aguardava com ansiedade as primeiras palavras a serem jogadas no ar para fazer, rapidamente, uma análise morfossintática, sobretudo, esperando a dor que poderiam lhe causar.

Marta era funcionária de uma antiga loja de sapatos. De origem alemã, apesar de baixinha, trazia o sobrenome Schumacher, herdado da bisavó.  Mesmo quando não estava a trabalho, andando na rua, olhava sempre para o que cada um calçava: sapatos, tênis, sandálias, rasteirinha, salto alto. Mais atenção aos femininos, afinal, a concorrência é grande. Não gostava de olhar chinelos, talvez porque não vendesse muitos ou a comissão fosse mínima. Batia o olho no pé de qualquer um e já sabia o número do calçado. Seu olhar estava tão aguçado que podia diferenciar os tipos de pés dos fregueses: cavos, chatos, normais, romanos, gregos, egípcios, dedos longos, finos, quadrados, espatulados. Ela, provavelmente, à primeira vista, não se lembrará de seu rosto no próximo encontro, mas seu pé se tornara inesquecível.

Camila identifica de longe a má postura corporal. Fisioterapeuta competente, diagnostica no olhar lordose, escoliose, cifose e todas as “oses” possíveis. Insiste em querer chamar de articulações aquilo que chamo de emendas. Não gosta das minhas terminologias criativas, prefere falar de músculo paravertebral e escápula. Imagino que quando olhe para mim consiga vê-los como se tivesse olhos de raios-x.

Conhecer os olhares moldados pelas vivências pessoais e, mais especificamente, laborais, tema principal de nossa observação, é fascinante. Saber também que você pode ser no mínimo três ao mesmo tempo é mais impressionante ainda. Você é como se olha, como o outro te olha e como acha que o outro vê você. E, com certeza, mais um: como você realmente é. 

Sempre que converso com alguém, gosto de observar qual o olhar da pessoa em relação ao mundo a sua volta. É um exercício saudável, é minha maneira de realizar autoanálise e aprender a olhar diferente aquilo que parece igual.

A tarefa de aprender a olhar mais do que ver, pode ser muito interessante e enriquecedor. A propósito, nunca conversei sobre esse assunto com um ginecologista, mas estou de olho.


 

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