ARTIGO

Deuses brasileiros, uma breve crônica

Deuses brasileiros, uma breve crônica

Por Gabriel Goes

Por Gabriel Goes

Publicada há 3 anos

- Então, eu estou morto. É isso que vocês estão me falando? Perguntou nosso protagonista, incrédulo e com certo sorriso de deboche no rosto.

- Sim, você está – disse calmamente um dos homens que haviam há pouco se sentado à mesa de nosso protagonista – aliás, a pizza daqui é muito boa. Deveria experimentar. Sabe, antes de finalmente parar de comer.

- Por que eu pararia de comer? Me desculpe, mas não estou gostando dessa ideia. Vocês devem estar bêbados, estou esperando alguém, então por favor, podem ir embora...

Ele não teve tempo de terminar. Eram vários homens, e um deles se levantou e bruscamente partiu para cima do recém finado. Ele foi rápido e fatal, desferindo um potente soco no rosto protagonista, que caiu sangrando no chão, sentindo terrível dor.

O homem havia se levantado e em milésimos de segundo já estava novamente pronto para terminar o que havia começado com o primeiro soco. Foi, no entanto, impedindo por outro deles.

- Não precisa ser tão raivoso, Ira. Ele é um espécime raro, não se esqueça. Agora, venha cá. 

O agressor mudou de feição, de algo demoníaco para apenas intimidador. Sentou-se novamente em seu lugar.

- Agora, por favor, levante-se - Disse o homem que havia falado da pizza – e não se esqueça de olhar para as pessoas. Elas não perceberam nada disso.

Assustado, sentindo o gosto amargo do próprio sangue, nosso protagonista até então sem reação olhou em volta. Viu casais. Grupos de amigos. Pessoas solitárias. Observou o atendimento dos garçons. E percebeu, por outro lado, que ninguém o via.

- Eu...eu não entendo o que tá acontecendo aqui – Disse, tentando se recompor – Deve ser uma brincadeira sem graça de alguém que...

Novamente, interrompido. Dessa vez, sem agressão.

- Rapaz, nós te entendemos. Sabemos como é difícil num primeiro momento entender tudo isso. Agora, quer se sentar, por favor? – Existia certo ar de polidez em suas palavras. Parecia ser respeitoso e pronto a ajudar, mas ao mesmo tempo, falso.

“Não, eu não quero”, pensou o protagonista. Sentiu-se, no entanto, imediatamente convencido a se sentar, pelo simples olhar daquele homem. Então, com medo, sentou.

- Bom, assim é melhor. Estamos mais iguais agora, não acha? – Disse sorrindo, o homem de extrema elegância. – Eu acho. Agora, rapaz, vamos nos apresentar. Este é Ira, nosso mais agitado colaborador. Este é Gross, e olha só, ele está mostrando o dedo para você. Sinal de que gostou da sua figura. Já este é Ig, mas não se preocupe, ele está quase tão perdido quanto você nisso tudo. 

- São nomes bem estranhos – Disse o protagonista, limpando o vermelho do nariz – mas ainda não estou entendendo nada disso. Quem são vocês?

- Basicamente, somos deuses.

- Deuses?

-Você ouviu.

- Deuses? Estilo Jesus?

- Bom, ele é um de nós. Mas não gosta de andar com a gente. E vocês brasileiros também tem esquecido dele frequentemente. Anda solitário por aí. Você ao menos tentava ser próximo dele. Admito que pensar isso me deixa enciumado.

- Nada disso faz sentido, que deuses estranhos são vocês. Sem toda a “glória” e os anjos com trombetas...

Ira se levantou novamente com ódio, mas o homem refinado direcionou a ele um ríspido olhar.

- Não ligamos muito para isso, amigo. Temos altares implícitos e ao mesmo tempo evidentes em todos os lugares deste país. Entenda, todos os deuses existem. Daqueles esquisitões animalescos vindos do México até aqueles dragões estranhos da China. Ei, aqueles me dão certo medo. Quando um grupo de pessoas sente, vibra e presta adoração para um construto social com intensidade e tempo suficiente, ele se torna um deus. É o nosso caso.

- Construto social?

- Sim, uma convenção da sociedade, feita e refeita com tanta intensidade que nos torna reais. Afinal, aqui estamos todos.

- E...quais deuses vocês são? Ou que tipo de deuses são? Disse o protagonista, com receio de outro soco, pois o anterior ainda doía.

- Os nomes não entregaram nada? Você era mais inteligente quando vivo, hahaha.

Não houve resposta.

- Bom, o que te socou é a representação da Ira, muito presente nos brasileiros. Vocês sempre estão bravos com qualquer coisa. Este é – Apontando para Gross – a grosseria tornada sólida na sua frente. Ei, dessa vez são os dois dedos médios, hahaha. Este, o mais perdido, é Ig, de “ignorância”. Afinal, vocês não gostam muito de estudar, não é? Sejamos francos...

- Eu gostava, na verdade.

- Sim, por isso viemos te buscar pessoalmente. Você, ao contrário de todos neste bar, neste bairro, cidade ou país, não nos adorava. Nunca ergueu um altar para nenhum de nós. Sempre distante, meu filho.

- Nunca ergui nenhum altar? 

- Não. Você nunca prestou reverência ao Ira, sempre cultivou a calma e a paciência. Nunca quis ser grosso, e quando foi, dando falsas esperanças para o nosso amigo aqui – Disse, tocando levemente no ombro de Gross – se desculpou prontamente com quem quer que fosse. Sempre enfraqueceu nosso querido burrinho Ig, lendo e estudando com frequência.

- Bom, eu tentava fazer o certo...

- E fazia, quase sempre. Era uma boa pessoa, mas não para nós.

O protagonista percebeu que “Ig” falava com “Ira”, algo sobre alguém que deveria estar lá. Não conseguiu entender mais do que isso.

- E por isso estamos aqui. Tendo buscado a paciência, tendo lutado contra os próprios erros, por ter tentado ser melhor, você foi indiferente a nós. Pelo menos até agora.

As pessoas sumiam. O lugar parecia cada vez mais escuro.

- Então, tudo isso...o que acontecerá agora?

- Você acredita em reencarnação? 

- Sinceramente, não.

- Pois bem você reencarnará, sendo tudo aquilo que odiou nesta vida agora passada.

- Tudo que eu odiei?

- Sim. Você será irado, terá surtos de raiva. Será preguiçoso e ignorante. Ríspido e grosseiro, tratará quase todos de maneira ruim, menos aqueles os quais pode tirar vantagem. E por fim, passará seus dias defendendo políticos populistas e corruptos pela infinidade de redes sociais inúteis.

- Mas e a minha redenção? E o purgatório? E por que isso de adorar políticos?

- Relaxe, rapaz. Você estará entorpecido pelos prazeres efêmeros cultivados por este povo. Será quase feliz. E sobre a politicagem, bem, como eu controlo todos estes deuses? Sendo o mais poderoso deles. Eu sou Poli, de “política”. Vocês vivem por mim, mesmo praticamente não me conhecendo. Vocês matam uns aos outros por mim. 

- Eu não quero me tornar isso, o que eu posso fazer?

De repente, alguém grita no que antes foi a porta do bar. Suado e desarrumado, o homem pergunta:

- Ei, vocês já começaram com o cara?

- Aquele, quem é? Perguntou o protagonista.

- Bem, aquele é o Atraso. Afinal, vocês adoram se atrasar, não é?

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