ARTIGO

Sobre Camas e Outras Idiossincrasias

Sobre Camas e Outras Idiossincrasias

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 3 anos

Dizem que teimosia é uma característica marcante dos espanhóis e seus descendentes. Existem inúmeras piadas e brincadeiras sobre o fato. Uma delas diz que é muito fácil colocar vinte espanhóis dentro de um fusca: basta falar que não cabem.

A teimosia é associada tanto a aspectos negativos como positivos. Alguns acham que teimosia é sinônimo de convicção, obstinação e determinação. Outros que é apenas ignorância, comportamento que beira à burrice, senilidade. Fora os eufemismos: pessoa de caráter forte, genioso, caprichoso, jeito peculiar de viver. 

Na música “teimoso”, da banda “Ultraje a Rigor”, o compositor também fala da dualidade de significâncias que essa palavra provoca, dizendo que “a minha teimosia não é como a do burro / a minha teimosia é o que me faz seguir em frente”.

Essa característica, todavia, não é exclusividade de um povo, até porque acho italiano tanto ou mais teimoso que espanhol. Falo de causa própria. Tenho ascendência italiana em quase todos os galhos de minha árvore genealógica. Observando meus avós e ouvindo, desde moleque, que sou teimoso, especialmente quando essa afirmação vem de gente que se considera espanhola, me parece que talvez, quem sabe, não concordo totalmente, até nego, eu seja um pouco, pouquíssimo, teimoso.

Para ilustrar, conto uma história ocorrida há muitos anos, quando mostrei minha determinação ou caráter forte. Tinha no meu quarto uma cama de casal, uma cômoda e um guarda-roupa. Em um daqueles dias que acordamos inspirados, resolvi mudar a disposição daqueles móveis. Como morava sozinho, não havia ninguém para dar opinião e, melhor ainda, dar palpite, pois são coisas diferentes. 

A primeira providência foi tirar a cômoda do quarto. O guarda-roupa coloquei na parede onde havia uma porta. Encaixou perfeitamente no espaço sem aberturas. A cama, assim como os outros móveis, era antiga e pertencera a minha avó paterna, todos relíquias afetivas, daquelas que quase todo mundo tem e não se desfaz tão facilmente. Não desapega, nem com a OLX. Crença do ser humano de que o valor está nas coisas, não nas pessoas.

Enfim, coloquei a cama encostada na parede do lado aposto ao guarda-roupa e a cabeceira contra a parede da diagonal. Os pés da cama ficaram próximos à parede que restou vazia, onde estava a janela do quarto. Foi justamente nesse espaço, entre os pés da cama e a parede da janela, onde resolvi colocar uma estante. 

Dessa forma, a estante de aço pequena, ainda na minha imaginação, ficaria espremida entre os pés da cama e a parede da janela, num canto onde essa não a alcançaria, já que fora aberta no meio da parede. A parte traseira da estante ficaria escorada na parede que acompanhava um dos lados da cama. 

Até aqui tudo bem, se o espaço reservado para colocar minha estante não fosse insuficiente. Porém, já tinha feito todas as mudanças desejadas e havia projetado mentalmente a estante naquele lugar. 

Minha namorada da época apareceu em casa logo depois das mudanças, então contei minhas intenções para ela, não com ela. Quando falei sobre o plano de colocar uma estante no lugar reservado, sua primeira indagação foi a de querer saber como eu iria colocar uma coisa em um lugar que não cabia. Resposta óbvia: não sei, mas vou por a estante naquele espaço.

Passavam-se os dias e sempre que minha namorada entrava no meu quarto me via de short, sem camisa, todo suado e com trena na mão. Trena é aquela fita métrica amarela, bem fina, de aço. Só não sei o porquê de todas serem amarelas. Como isso não interferiu nas minhas medições, vamos prosseguir com a história. 

Até que chegou o dia em que minha namorada entrou no quarto e me pegou no flagra. Lá estava eu agarrado a ela, segurando firme com as mãos suadas. Sim, a estante. Comprei. Ela, a namorada, perguntou se tinha achado outro lugar para colocar a estante. Disse que não, que pretendia colocar no lugar programado. Ela retrucou dizendo que eu já tinha me certificado que não caberia. 

E o que sucedeu foi algo parecido com aqueles flashbacks de filmes americanos, mostrando uma sucessão de cenas em que minha namorada entrava no quarto e me via tentando colocar a estante no lugar programado, por mim, é claro. Tentava encaixá-la no lugar colocando-a na diagonal para depois endireitá-la. Em outra tentativa suspendia a estante acima da cama e ia descendo para ver se encaixava. Se eu fosse descrever todas as minhas tentativas, escreveria um livro.

Assim, em um belo dia de primavera, numa refrescante tarde de sábado, quando os raios sol entravam delicadamente pela janela no intervalo do balançar das cortinas, empurradas pelo vento fresco que trazia consigo o aroma das flores do jardim, minha namorada chegava mais uma vez ao meu quarto. 

Não foi bem assim que aconteceu, mas achei que contando dessa forma dava um ar mais romântico à cena. A verdade é que, quando minha namorada entrou no quarto, lá estava a estante, estacada inerte no lugar planejado desde o princípio, com todos os ornamentos visionados conjuntamente com aquela prateleira. 

“Mas como você conseguiu?”. Era a primeira indagação que espera ouvir. E ouvi. Então, tratei de explicar. “Muito simples, serrei a cama”. Segunda pergunta óbvia: “Como é que é?” Segue-se a explanação. 

Nas minhas tentativas e análises de sucesso ao meu intento, percebi que havia um espaço entre o final do colchão e o pé da cama. Os centímetros precisos que separavam minha teimosia da minha determinação, a distância entre eu ser uma mula ou um empreendedor. Não tive dúvida, desmontei a cama, serrei os trilhos laterais, refiz os furos que haviam antes, coloquei os parafusos nos seus lugares, me certifiquei de que tudo estava firme e coloquei a estante exatamente no lugar que planejei.

Essa história pode parecer um relato de teimosia. Talvez possa mesmo ser. Não me incomoda ser chamado de teimoso, nem vou teimar com isso hoje. O que me incomoda, verdadeiramente, é a prepotência fantasiada de teimosia. 

Devemos diferenciar uma da outra. Não é difícil fazê-lo. Teimoso é aquele que serra a própria cama. Prepotente é o que quer serrar a cama dos outros. 


Sérgio Piva

s.piva@hotmail.com

  



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