ARTIGO

As águas virtuais dos Narcisos modernos (que ainda navegam nos mares midiáticos)

As águas virtuais dos Narcisos modernos (que ainda navegam nos mares midiáticos)

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 4 anos

Existe um vídeo rodando nas redes sociais, dentre os milhares, intitulado “Comprei um helicóptero vestido de mendigo”, do qual quero falar. 

Normalmente, assisto uns dez por cento dos vídeos que recebo. Parece um limite tolerável entre mensagens de “bom dia”, “boa noite”, piadas novas e velhas ou frases e vídeos de autoajuda e de uma quase infinita quantidade de avisos para tomarmos cuidado com algum tipo de besteira ou mentira facilmente detectável, mas que as pessoas fazem questão de compartilhar com seus contatos assim mesmo, por ingenuidade ou pela automaticidade mecânico-mental dos repassadores de postagens. 

O mencionado vídeo, descobri, faz parte de um canal do Youtube de certa pessoa, que não vou fazer propaganda do nome, onde estão postados inúmeros outros vídeos do tal mendigo (ou “mendingo”, segundo o autor repete em um deles) comprando motos, carros, o citado helicóptero e atuando em outras situações onde, segundo ele, o personagem sofre discriminação pela situação ou aparência de mendicância.

Por hora, como disse, vou-me ater ao vídeo da suposta compra do helicóptero. O enredo da história é o seguinte: O fulano, autor dos vídeos, conta que um primo que mora há dois anos nos Estados Unidos voltará a morar no Brasil e precisará de um helicóptero. Como esse primo assiste aos vídeos do mendigo comprando coisas, pediu, então, que comprasse a aeronova vestido como o personagem.

O mendigo, assim, vai até um parque onde será realizada a compra do helicóptero, previamente combinada por telefone. Depois de colocar a roupa do personagem, um figurino mal elaborado do falso pedinte, aproxima-se da aeronave estacionada, cujo piloto está ao lado, pula um alambrado para ter acesso ao local e, dirigindo-se ao piloto, pergunta a quem pertence o helicóptero e se pode dar uma volta. Acredito que a cena causaria estranheza a qualquer pessoa que estivesse no lugar do piloto. 

Em seguida, pede para ver a aeronave, ao que o piloto concorda, desde que “dê uma olhadinha de longe”. O “mendigo”, insistentemente, pede para “dar uma volta” no helicóptero, quer saber o motivo da venda da aeronave. O piloto já irritado puxa o “mendigo” pelo braço e, proferindo palavrões, diante da persistência do personagem no pedido para “dar uma volta” na aeronave, tenta afastá-lo do helicóptero e retirá-lo do local.

A história se desenrola com um fundo musical melancólico, tentando provocar sentimento de tristeza na audiência, entre frases explicativas e novas insistências do “mendigo” em voar na aeronave. O piloto pede repetidas vezes ao personagem, utilizando a expressão “por favor”, para que não fique ali porque poderia atrapalhar o negócio.

Enfim, após tanta falação de ambos os lados, o personagem revela seu plano fantástico, benemérito, salvador dos bons costumes e da moral da sociedade. Conta ao piloto que “esse vídeo aqui eu tô gravando. Esse helicóptero quem vai comprar vai ser eu, mano”. 

Seguem-se momentos onde o agora comprador da aeronave, já fora do personagem, resolve dar uma lição de moral no piloto, sugerindo tê-lo humilhado anteriormente por achar que era mendigo. Diz mais, que agora não fala mais com ele, piloto, mas com o chefe para registrar a “humilhação” e tecer suas reclamações. 

Não deu atenção aos pedidos desesperados de “perdão” do piloto para não relatar o caso ao patrão, com medo de ser demitido, afirmando que precisava daquele emprego. 

Corte no vídeo, retorna sozinho o famigerado produtor e protagonista do vídeo explicando, com uma cara tipo Donald Trump, que “já falei com o chefe do cara lá, acho que o chefe vai demitir ele”. Em seguida, entra no helicóptero que dá partida e decola, aparentemente, sendo pilotado pelo astro rei, salvador dos cansados e oprimidos. 

A publicação no Youtube foi visualizada por milhares de pessoas, sem contar outras redes sociais, como Facebook e Whatsapp, com a aprovação (likes) da maioria.


Gostaria de saber o que aprovaram. Caso tenha sido a ideia, pouco original, diga-se de passagem, do autor do vídeo, dono do canal do Youtube, que ganha dinheiro à custa de seus seguidores (quase um milhão), posso até compreender, mas dar um “like” (aprovar) uma atitude completamente esdrúxula e, no mínimo, contraditória, não parece sensato.


A incoerência está em condenar uma atitude, o ato de humilhar outra pessoa, com postura semelhante, já que ele também, ou muito mais, humilhou o piloto. Querendo criticar o modo de agir alheio, mas reproduzindo o comportamento que supostamente condena e, em minha opinião, de maneira muito mais devastadora.  


Digo “supostamente condena” porque me parece que o objetivo do produtor seja o comércio, ganhar dinheiro com seus vídeos, não o de querer “fazer o bem”, como finge proceder. Haja vista, no começo do vídeo, dizer do que precisa (com legenda): “80 mil like!” (O correto seria likes, por tratar-se de plural).


Arrisco a dizer mais. Imagino que mesmo querendo ganhar dinheiro, o principal objetivo seja o de aparecer, tornar-se famoso nas redes. Quem sabe, assim, alça voos maiores, em outras redes. Como ele mesmo disse, “o helicóptero não vai ser meu, mas o status de chegar lá, e comprar, vai ser meu”. A aparência é o que mais importa. 


Ainda que a compra do tal helicóptero tenha sido desmentida por outro vídeo, afirmando tratar-se de uma farsa, o que, ainda, me surpreende é a quantidade de pessoas que transmitem, retransmitem e apoiam vídeos e mensagens inúteis nas redes sociais, acreditando em tudo aquilo que é postado, propagando mentiras e ideias irracionais e contribuindo para difusão do egocentrismo midiático social. 


Reconheço a importância e utilidade das mídias sociais, não falo delas propriamente, falo de seu uso desacertado, fazendo proliferar Narcisos modernos, como no mito do herói que se apaixona pela própria imagem refletida nas águas e termina por se afogar na tentativa de alcançá-la. As águas agora são virtuais, mas os Narcisos são os mesmos. 



Sérgio Piva

s.piva@hotmail.com


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