ARTIGO

O INDIVÍDUO, A SOCIEDADE E O HIV: do particular ao coletivo e suas repercussões

O INDIVÍDUO, A SOCIEDADE E O HIV: do particular ao coletivo e suas repercussões

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

A afirmação do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei nº 8080/90 (BRASIL, 1990), foi fundamental para a consolidação da luta contra AIDS e a transmutação de portadoras de HIV/AIDS (PVHA) da condição de destinatários passivos a participantes ativos e protagonistas (ALMEIDA; RIBEIRO; BASTOS, 2021)

O Brasil contava, desde o início da epidemia (1980) até junho de 2019, com um total de 966.058 casos de AIDS, com maior concentração nas regiões Sudeste(51,3%) e Sul (19,9%). As regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste rotulam 16,1%, 6,6% e 6,1% do total dos casos, respectivamente (BRASIL, 2019a). Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) apontaram, em 2018, 37.161 casos de AIDS notificados. Em 2019, porém, registrou-se uma quedade mais de 50% no número de casos, totalizando 15.923 casos (BRASIL, 2019b), sem considerar a subnotificação nos sistemas oficiais de informações em saúde (ALMEIDA; RIBEIRO; BASTOS, 2021). Contrariamente a esses números, registram-se tendências da epidemia no mundo, embora se vislumbre uma reemergência da doença no país, voltando a crescer, evidenciando-se um aumento de casos em populações mais jovens, com evidência à faixa etária 15-24 anos como a mais afetada (BRASIL, 2019a).

Nota-se uma desconcentração desproporcional, com elevada prevalência entre homens que fazem sexo com homens (HSH): no Brasil, esse comportamento representa 14,2% em comparação a 0,6 % na população geral adulta brasileira. Quando comparada à taxa de infecção entre os homens heterossexuais, a relação é13 vezes maior em relação aos HSH residentes no País (BARBOSA JR et al., 2009; BRASIL, 2015).

Embora se constate redução na incidência da infecção pelo HIV em vários países, uma fração de HSH troca sexo por dinheiro e não usa preservativos de forma não persistente. Devido ao desconhecimento ou despreocupação com a doença e ao desuso habitual de preservativos e demais cuidados de higiene e precaução nas relações sexuais, a epidemia tem crescido de forma desproporcional nos grupos mais jovens, o que faz ampliar vulnerabilidades e aumentar o risco de infecção pelo HIV (ALECRIM et al., 2020).

A AIDS/HIV foi veiculada pelos meios de comunicação como associada aos homossexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo, e considerada como letal e incurável (MATOS; SANTANA; PAIXÃO, 2012), o que levou a uma estigmatização por todas as camadas da sociedade, independentemente da condição do portador do HIV, como grau de escolaridade ou conhecimento da epidemia, status social ou econômico, gerando medo e desconfiança na população.

O trabalho sexual é a “venda de serviços sexuais consensuais por adultos em troca de dinheiro, bens ou objetos, podendo esta atividade ocorrer regularmente ou ocasionalmentee, conforme as legislações do país, formalmente ou informalmente” (ALECRIM et al., 2013, p. 1026).Trata-se de uma prática “profissional” com baixa ou nenhuma aceitabilidade social, que carrega consigo características e signos sociais estigmatizados. Contudo, a troca de sexo por dinheiro como atividade ocasional, sem se identificarem como trabalhadores do sexo, serve para o sustento temporário ou pagamento por algo bem caro.

Alguns fatores estão associados à iniciação dos homens no trabalho sexual: econômicos (pobreza absoluta), abandono familiar, dificuldades de integração ao mercado formal de trabalho, baixa escolaridade e qualificação profissional, os quais expõem maior vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis (DST/AIDS) pela pluralidade de parceiros sexuais e situações associadas a baixo nível socioeconômico e relações sexuais de risco, uso de drogase uso inconsistente de preservativos (PASSOS; FIGUEIREDO, 2004).

Existe, porém, um silenciamento das ações em saúde direcionadas a esse público, tratado de modo implícito como “outros homens que fazem sexo com homens”. Essa “invisibilidade evidencia importante limitação do poder público em se adaptar, de forma apropriada, com ações de prevenção contextualizadas à complexidade das redes sexuais entre esses homens” (ALECRIM et al., 2020, p. 1026).Os fatores de vulnerabilidade ao HIV/AIDS, no entanto, não devem ser considerados como problemas isolados, mas como exemplos reais da necessidade de respostas abrangentes ao HIV.

Diante da rápida disseminação e alta taxa de letalidade e emoções de pânico, de medo e de contágio, a sociedade procurou entendê-la para reduzir as consequências. Produziu-se um discurso configurado como a “sensação de um risco iminente que repercutia sobre toda a coletividade, questionando nossos modos de vida e nossos valores” (ALMEIDA; LABRONICI, 2007, p. 264).

Nesse sentido, a AIDS permitiu a elaboração do seu conhecimento comum produzido pela sociedade e pela opinião pública, construído paralelamente à codificação médica (conhecimento médico sobre a doença). Desconhecida, a sociedade criou representações apoiadas na ideia de “doença contagiosa, incurável e mortal, uma ameaça extrema à sociedade, atrelada à evitação de contato com a pessoa” portadora. Além disso, a AIDS era entendida como uma doença que levava à deformação física, associada a grupos considerados discriminados e marginalizados (homossexuais, usuários de drogas injetáveis, prostitutas). Essa representação retirou-a do campo das doenças, alocando-a ao hemisfério das doenças malignas, fomentando sentimentos, preconceitos, comportamentos e políticas discriminatórias, induzindo estigmas, transformando-se ela mesma em um grande estigma (ALMEIDA; LABRONICI, 2007; GARBIN et al., 2013).

A doença absorveu crenças e interpretações morais, principalmente relacionadas à sexualidade, provocou a instituição de valores que explicavam a origem da infecção e incutiu sofrimento íntimo, culpa e responsabilidade à pessoa doente ou portadora do HIV, sob o rótulo de culpada pelo rompimento do estilo de vida e dos comportamentos socialmente aceitáveis: “a doença reafirma seu caráter de pena e castigo” (ALMEIDA; LABRONICI, 2007, p. 265). O portador soropositivo passa a sentir-se alijado do convívio social, merecedor de castigos divinos e expiação pelos atos transgressores que cometeu, e convive com o sentimento de morte que, se antes era apenas idealizada, agora passa a ser uma constante próxima e real, merecida, providencial devido ao seu modo de vida como causa da infecção pelo HIV.

A convivência com o HIV/AIDS vem permeada por sensações de medo, morte e culpa, e todo um conjunto de metáforas discriminatórias, fragilidades e vivência de ameaça à integralidade física, emocional e social, provenientes do preconceito e da ignorância (SONTAG, 2007). As pessoas com HIV e AIDS sofrem dentro de um contexto eivado de significados: medo do abandono, do julgamento ao ser revelada sua identidade social, culpa pelo adoecimento, impotência, fuga, clandestinidade, omissão, exclusão e suicídio, originados do convívio social que reforça os hábitos e as expectativas enraizados numa sociedade preconceituosa (MONTEIRO; VILLELA, 2013).

O estigma ligado ao HIV vai “muito além de repercussões individuais e está diretamente ligado a reproduções de desigualdades sociais, em que o rótulo do estigma leva ao preconceito, à rejeição e à perda de status” (GARBIN et al., 2017, p. 12). Se o objetivo é ter respostas mais efetivas no controle da doença, faz-se mister um entendimento maior da forma como o estigma é construído, sentido e experienciado.

 REFERÊNCIAS

 ALECRIM, D. J. D.; CECCATO, M. G. B.; DOURADO, I.; KERR, L.; BRTO, A. M.; GUIMARÃES, M. D. C. Fatores associados à troca de sexo por dinheiro em homens que fazem sexo com homens no Brasil. Ciênc. Saúde coletiva, v. 25, n. 03, p. 1025-1039, 2020. 

ALMEIDA, A. I. S.; RIBEIRO, J. M.; BASTOS, F. I. Análise da política nacional de DST/AIDS sob a perspectiva do modelo de coalizões de defesa. CienSaude Colet. [periódico na internet], jan. 2021. 

ALMEIDA, M. R. C. B.; LABRONICI, L. M. A trajetória silenciosa de pessoas portadoras do HIV contada pela história oral. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 1, p. 263-274, 2007. 

BARBOSA JUNIOR, A.; SZWARCWALD, C. L.; PASCOM, A. R.; SOUZA

JÚNIOR, P.B. Tendências da epidemia de AIDS entre subgrupos sob maior risco no Brasil, 1980-2004. CadSaude Publica, v. 24, n. 4, p. 727-737, abr. 2009. 

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 20.9.1990. Brasília, DF, Presidência da República, 1990,

 ______. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico HIV/AIDS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2015. Ano IV, n. 1.

 ______. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/AIDS. Brasília: MS, 28 nov. 2019a.

 ______. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. TABNET. DATASUS. Informações de Saúde [Internet], 2019b. Disponível em: www.datasus.gov.br. Acesso em: 8 dez. 2021.

 GARBIN, C. A. S.; MARTINS, R. J.; BELILA, N. M.; GARBIN, A. J. Í. O estigma de usuários do sistema público de saúde brasileiro em relação a indivíduos HIV positivo.DST - J bras Doenças Sex Transm, v. 29, n. 1, p. 12-16, 2017.

 MATOS, F. S.; SANTANA, L. P.; PAIXÃO, M. S. Reflexões bioéticas noatendimentoodontológico ao paciente portador de HIV/AIDS. RevBrasBioét., v. 8, n, 1-4, p. 57-6, 2012.

 MONTEIRO, S.; VILLELA, W. Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. 207 p.

 PASSOS, A. D. C.; FIGUEIREDO, J. F. C. Fatores de risco para doenças sexualmente transmissíveis entre prostitutas e travestis de Ribeirão Preto (SP), Brasil, Ribeirão Preto (SP). Rev Panam Salud Publica, v.16, n. 2, p. 95-101, 2004.

 SONTAG, S. Doença como metáfora: a AIDS e suas metáforas. Tradução: Paulo Henriques Brito e Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora Companhia de Bolso, 2007. 168 p. 

últimas