ARTIGO

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER SE METE A COLHER

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER SE METE A COLHER

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

 Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia. Total ou parcialmente, mais de 91% dos entrevistados concordam com esta percepção”. (IPEA, 2015, p. 3). Dos 3.810 entrevistados, 78% concordaram totalmente com a prisão ou punição severa para maridos que batem em suas esposas. Além disso, 89% discordaram da afirmação de que “um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher” (IPEA, 2015). Em todos os casos, crimes de violência doméstica contra a mulher devem ser investigados independentemente da vontade da vítima, mas 4,3% assumiram que não deve prosseguir por se tratar de uma questão particular do casal, e somente 0,2% entenderam que a investigação não deve prosseguir porque “o crime não é tão grave”, embora, na percepção social, em briga de marido e mulher há, sim, que se meter a colher.

Esses resultados, porém, não permitem concluir que existe baixa tolerância à violência contra a mulher na sociedade brasileira, uma vez que a mesma pesquisa oferece evidências contrárias. Quase três quintos dos entrevistados (58%) concordaram, total ou parcialmente, que, “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”, e 63% concordaram que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”; para 89% dos entrevistados, “a roupa suja deve ser lavada em casa”, e 82% cotejam que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” (IPEA, 2015, p. 3). Outros resultados da pesquisa sugerem que a maioria da população ainda adere a uma visão de família patriarcal, ainda que sob uma versão contemporânea, atualizada. Nessa visão de família, o homem (o macho) é o chefe da família. O marido deve tratar bem sua esposa e desavenças “menores” devem ser resolvidas no espaço familiar. Em contrapartida, a esposa deve “se dar ao respeito”, comportando-se conforme o papel prescrito pelo modelo patriarcal. Se os conflitos, porém, se tornarem violentos, o casal deve optar pela separação, tendo a violência como seu motivo. A mulher, contudo, não deve tolerar violência contra os filhos e, “se o marido bater, é caso para intervenção do público na esfera privada” (IPEA, 2015, p. 4).

Vive-se, na modernidade, uma sociedade capitalista, machista, racista e classista, que tende a coibir as mulheres com padrões e imposições que oprimem ou dificultam sua vida, liberdade e autonomia. É uma forma de aprisionamento alicerçado no patriarcado, sistema de controle e opressão das mulheres diante dos homens (QUEIROZ et al., 2019). No patriarcal, o poder masculino organiza socialmente a família (mulher, filhos, adidos), assentada na heterossexualidade: prevalece a dominação como ato contínuo de homens sobre mulheres (BRASIL, 2018), sujeitas à sua autoridade, vontades e poder, numa relação de desigualdade. O homem domina o espaço doméstico, tem controle sobre a mulher e seu corpo. Esta lógica patriarcal de gênero impõe a subordinação, a dominação e a opressão das mulheres pelos homens e, em decorrência, a violência contra a mulher surge como algo natural (QUEIROZ et al., 2019).

O modelo patriarcal de família pressupõe a supremacia masculina, cujo arranjo familiar é composto por homem (centro), mulher e seus filhos. Androcêntrico e heteronormativo, o modelo coloca o homem e o masculino como referência em todos os espaços sociais, em que o homem detém o poder de decisão, de mando, de recursos e controle do corpo e da mente da mulher e, muitas vezes, para manter sua masculinidade intacta e sua autoridade, o homem recorre à violência física ou psicológica. Esse modelo é valorizado na expressão “o homem deve ser a cabeça do lar” (IPEA, 2015).

As violências física, sexual, emocional e moral não ocorrem isoladas, e o abuso emocional é capaz de destruir a autoestima feminina por meio de manipulação, humilhação ou ridicularização em público, acusações infundadas, vigilância descomedida, ameaça e perseguição contumaz, chantagem, entre outros ataques, que incorporam um caráter mais velado, despercebidos ou incorporadas pelas mulheres (BRASIL, 2015; SILVA; TORMAN, 2018).

A violência doméstica envolve afetividade e sentimentos extremamente profundos, geralmente fundada no desrespeito ao amor. Os resultados são o conflito, os maus-tratos e as violações que causam danos físicos e psíquicos (BRASIL, 2015). Em uma relação que reúne afetividade e carga emotiva, a ruptura do respeito, associada ao preconceito na hierarquização das relações e à luta pelo reconhecimento, causa persistência da passividade feminina e da agressividade masculina e conduz a mulher a uma posição de inferioridade e submissão, o que acaba por naturalizar a ação violenta do homem (SILVA; TORMAN, 2018, p. 29). As violências cometidas contra mulheres no ambiente doméstico legitimam ou ignoram sua gravidade e ilustram mitos populares como “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, mostrando a supremacia do homem como o mais forte no espaço familiar (MEDEIROS, 2016).

As razões alegadas para a violência contra as mulheres, como mecanismo de submissão feminina e perpetuação de uma ordem baseada no primado masculino na sociedade (IPEA, 2015, p. 19), costumam relacionar-se a alguns fatores: é aceitável (dentro de certos limites), naturalizada (inerente às relações sociais), responsabilidade do agressor atenuada por alegações como: não está no exercício pleno da consciência, é pressionado socialmente, não consegue controlar seus instintos, e a mulher é responsável pela violência (provoca o homem, não cumpre seus deveres de esposa e de mãe de família, não se comporta de maneira adequada).

A Lei Federal n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar e garantir a integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial (BRASIL, 2006) e fez emergir um problema até então obscurecido na relação privada familiar: a violência doméstica e tudo aquilo “concernente a este ambiente, inclusive o poder e a dominação sobre o outro” (BRASIL, 2015, p. 25). Como uma das formas de dominação do homem sobre a mulher a violência física e psicológica coage a “liberdade de pensamento, reflexão, de decisão buscando o constrangimento, a diminuição, a renegação [e abdicação de si], demonstrando a supremacia do ser superior” [o homem], não importando raça, cor ou padrão social” (BRASIL, 2018, p. 10).

A Lei Maria da Penha incentiva as denúncias dos tipos de violência contra as mulheres, tornando mais rigorosas as punições para agressões em âmbito doméstico e familiar, embora ainda sejam incertas tais punições, porque as próprias mulheres se acham culpadas e os homens se sentem vítimas. A sociedade, porém, parece resistir em punir práticas agressivas contra a mulher, em que pesem o “crescente empoderamento da mulher, o tênue relacionamento existente entre o direito de retaliação e a violência contra a mulher, a nova postura de não submissão da mulher à violência doméstica e a construção da equidade” (MEDEIROS, 2016, p. 130). Em violência doméstica, a denúncia se faz imperiosa, apesar de ocorrer numa relação afetiva, e sua ruptura demanda intervenção externa, para que a mulher consiga desvincular-se de um homem violento.

A naturalização da violência contra mulheres na sociedade deve-se ao entendimento popular de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Esse ditado silencia e oculta o sofrimento, angústia, dor e depressão, submissão, exploração em todos os níveis e até mesmo a morte da vítima agredida, tem como justificativa ‘a defesa da honra’ ou ‘por amor’ e ocasiona a absolvição ou pena reduzida pena ao agressor (QUEIROZ et al., 2019).Todavia, entende-se que se trata de um grave problema de saúde pública e violação dos direitos humanos, e se deve inibir e combater esse tipo de violência, como um desafio institucional para a erradicação de condutas androcêntricas lesivas.

Em São Paulo, a Lei estadual nº 17.406/21 (SÃO PAULO, 2021, Art. 1º), reza que os condomínios residenciais e comerciais do estado, por meio de seus síndicos e/ou administradores constituídos, encaminhem comunicação imediata à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher da Polícia Civil ou ao órgão de segurança pública especializado, quando houver, nas suas unidades ou nas áreas comuns, a ocorrência ou indícios de episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos. Prevê incentivo, também, a seus moradores a notificarem o síndico ou administrador quando tomarem conhecimento da ocorrência ou de indícios de episódios de violência.

A vítima, a família ou a sociedade não devem silenciar, por acharem que “meter a colher” seja uma invasão à privacidade ou à intimidade: “em briga de marido e mulher se mete a colher, sim”, e isto vale também a qualquer tipo de violência doméstica, contra quaisquer vítimas indefesas ou vulneráveis. Esse tipo de violência costuma ser cercado pelo silêncio, demarcado pela autoridade do homem sobre a mulher. Tem-se que meter a colher contra violência entre pais e filhos/as, mães e filhos/as, marido e mulher, companheiros/as e companheiros/as.

A “cultura” da omissão (não agir nem denunciar) por parte da sociedade no enfrentamento da violência doméstica é uma das principais razões das tragédias com que, cotidianamente, se depara. A ordem é meter a colher, sim. Chamar a polícia e prender em flagrante os covardes agressores.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher [...] e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 8.8.2006. Brasília, DF, Presidência da República, 2006.

 

______. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos. Violências contra a mulher e as práticas institucionais. Brasília: Ministério da Justiça, 2015. 109 p. (Série Pensando o Direito; 52).

 

______. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. 244 p.

 

 

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. SIPS 2014 - Sistema de Indicadores de Percepção Social – Tolerância social à violência contra as mulheres [4 abr. 2014]. Brasília, DF: IPEA/SIPS, 5 fev. 2015.

 

MEDEIROS, G. P. T. Violência contra a mulher e a resistência em punir os agressores. In: V Semana Acadêmica de Direito da Faculdade Católica de Rondônia, de 11 a 13 de maio de 2016. Porto Velho. Anais... Porto Velho, RO, maio 2016. p. 124-137.

 

QUEIROZ, F. M.; DINIZ, M. I.; COSTA, I. M. H.; ALMEIDA, J. V. S.; PEREIRA, J. L. F.; LEITE, M. H. M. Em briga de marido e mulher se mete a colher: mapeamento analítico dos serviços de prevenção e combate às violências contra as mulheres no Rio Grande do Norte. In: 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais Tema: “40 anos da “Virada” do Serviço Social”, de 30 de outubro a 3 de novembro de 2019. Anais... Brasília, DF, 2019. 12 p.  

 

SÃO PAULO (Estado). Lei nº 17.406, de 15 de setembro de 2021. Obriga os condomínios residenciais e comerciais no Estado a comunicar os órgãos de segurança pública quando houver em seu interior a ocorrência ou indícios de episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos. São Paulo: Subsecretaria de Gestão Legislativa da Casa Civil, 2021.

 

SILVA, D. R. Q. da; TORMAN, R. “Em briga de marido e mulher”, metemos a colher: grupos terapêuticos com mulheres em situação de vulnerabilidade e violência de gênero. Gênero & amp; Direito, v. 7, n. 3, p. 22-42, 18 nov. 2018.

 

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