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EMPRESAS DOENTES QUE CUIDAM DE DOENTES: EXTRATO DAS MISERICÓRDIAS NO PAÍS

EMPRESAS DOENTES QUE CUIDAM DE DOENTES: EXTRATO DAS MISERICÓRDIAS NO PAÍS

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

“As Santas Casas de Misericórdia no Brasil são verdadeiramente ‘santas’. Prestam inestimável serviço à população brasileira, não recebendo, em contrapartida, da esfera federal e de outras instâncias da Federação, a remuneração correspondente ao seu trabalho e seu mérito. São ‘santas’ ainda por continuarem prestando um auxílio indispensável aos brasileiros, sob chuvas e trovoadas que ameaçam até mesmo sua sustentabilidade” (ROSENFELD, 2019). Os hospitais filantrópicos no Brasil somam 2.172, cuja rede se estende por todo o País. Em 968 municípios, prestam atendimento hospitalar, sem outra opção; a presença de uma Santa Casa nestes locais é sinônimo de saúde e, sem ela, muitas outras cidades estariam desamparadas.

Um paradoxo, porém, se evidencia: o serviço prestado é público, mas sua fonte de financiamento é estatal e insuficiente para cobrir seus gastos. As Santas Casas, públicas, filantrópicas, cuidam, deficitariamente, dos menos favorecidos, enquanto o Estado está ausente, sem considerar os desperdícios e prepostos incompetentes, seguindo um modelo insustentável, “adoecendo” a instituição e podendo chegar à insolvência. Como exemplo, dos 170.869 leitos, 126.883 (74%) são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS), com gastos, em valores de 2018, de R$ 24 bilhões; em contrapartida, pelas receitas e serviços prestados, receberam R$ 15 bilhões, gerando um déficit de R$ 9 bilhões. Esses hospitais filantrópicos suportam uma tabela do SUS claramente defasada (a tabela não é reajustada há 17 anos) e cobrem o déficit com as receitas de convênios privados e prestação de serviço particulares. Dessa forma, dois problemas se apresentam: o déficit de financiamento do sistema a ser resolvido com repasses públicos (atualização realista da tabela do SUS compatível com o atendimento público esperado) e a dívida acumulada pelo sistema a ser equacionada (ROSENFELD, 2019). A falta de atualização da tabela SUS para os repasses é um dos principais problemas enfrentados nos últimos anos e traz graves consequências para o sistema como um todo.

No Brasil, país marcado por desigualdades de acesso à assistência médica, organizar os procedimentos habituais do ambiente hospitalar das Santas Casas é um desafio permanente. Ao gestor cabe cuidar da implantação de rotinas diárias desses estabelecimentos de saúde, dos equipamentos necessários ao seu bom funcionamento e do pessoal ativo, ou seja, cabe-lhe desenvolver uma gestão profissionalizada, inovadora (FREITAS; BARTH, 2011).

Além disso, é preciso enfrentar as disparidades regionais de profissionais da área médica, colaboradores, equipamentos e tecnologias na área da Saúde, além de problemas de gestão. Segundo Costa (2012), os planos de saúde detêm 3,9 vezes mais médicos que os pacientes da rede pública, ou seja, os usuários do SUS têm quatro vezes menos médicos que os da rede privada, levando em conta os 145 milhões de pessoas que dependem do sistema público e 46 milhões que possuem planos de saúde. Esses números gigantescos mostram que, ao se assistirem os usuários que super lotam os hospitais públicos e Santas Casas, põem em risco o atendimento em saúde como um todo e expõem as deficiências do Sistema em termos de gestão, de equipamento, insumos e gestão de pessoal. Tal como a gestão de qualquer organização, deve-se profissionalizar a gestão operacional da entidade hospitalar, considerando a complexidade dos ambientes e os recursos sabidamente escassos destinados à saúde.

Para que não seja desastrosa e faça adoecer a organização hospitalar como um todo, a gestão deve ser conduzida sob a lógica da empresa, sem que, cada vez mais, os governos as considerem importantes apenas como temas para suas campanhas eleitorais. A gestão hospitalar deve fundar-se na ética e não na aparência que “prega um discurso idealizador mentiroso” e não consegue dar conta dos sérios problemas das organizações (FREITAS, 2006, p. 60). É relevante pensar na saúde moral das organizações hospitalares, sob uma permanente atitude crítica por parte delas e de seus membros em relação às suas próprias práticas internas e externas. Isso confere um sentido de justiça, dignidade e integridade aos seus comportamentos para com os funcionários, usuários e a sociedade. A gestão hospitalar não pode contribuir para o adoecimento da instituição, em especial os profissionais que nela atuam e devem prestar assistência a usuários também adoecidos. A gestão de pessoal compõe um dos elementos que participam, de forma decisiva, do desempenho da entidade hospitalar (LIMA-GONÇALVES, 2002).

Uma organização hospitalar, na composição dos recursos humanos, deve atentar para o recrutamento e seleção dos funcionários que admite. Deve buscar fontes de recrutamento dentro ou fora da organização e que os critérios de seleção de recursos humanos contemplemos padrões de qualidade para admissão e eficiência, aptidões físicas e intelectuais, experiência e potencial de desenvolvimento, tendo-se em vista o universo de cargos dentro da organização, descartando indicações mal direcionadas (COELHO, 2014). Seus Recursos Humanos devem primar seleção eficiente de seu pessoal: valorizar médicos, enfermeiros e todos os envolvidos em ambientes saudáveis, e não produzir seu adoecimento devido à má gestão, falta de coerência de ações e não reconhecimento de seu trabalho.

O processo de produção de saúde, além de englobar enormes contingentes de recursos humanos, envolve o emprego maciço de medicamentos, insumos, instrumental e equipamentos, considerando-se o estágio de desenvolvimento e efetividade da força de trabalho em saúde e das indústrias e empresas fornecedoras de bens e serviços para o prestador de cuidados preventivos, curativos e reabilitadores (BUSS; LABRA, 1995, p. 13-14).

Para o fornecimento de medicamentos, insumos, instrumental e equipamentos, a Lei no 8.080/1990 (BRASIL, 1990) oferece suporte legal à sua aquisição. Embora amparada em Lei, a aquisição desses equipamentos e insumos esbarra em um entrave crônico: seu subfinanciamento ou insuficiente fornecimento de recursos financeiros (endividamento) para recompor gastos e custos com insumos e de manutenção de aparelhos ou aquisição de novos, inibindo a expansão da rede especializada de atenção em saúde e colocando em risco a continuidade de serviços prestados.

Medici (2010) apresenta importantes dados sobre o financiamento da saúde pública no Brasil: 57% dos gastos com a saúde são privados e a distribuição dos gastos entre os três principais agentes econômicos aponta: governo (43%), famílias (30%) e empresas, incluindo as entidades filantrópicas (27%). Para Medici (2010, p. 82), o financiamento da saúde pública no País também enfrenta o processo que “beneficia produtores e mercadores de equipamentos médicos, medicamentos e materiais de saúde e suas redes de lobistas, que utilizam, muitas vezes, as associações de pacientes, o corpo clínico de corporações médicas e universidades e a mídia” a fim de garantir financiamento público para inovações tecnológicas. É frequente ainda que o tempo demasiado longo para a aquisição dos equipamentos e insumo faça com que a indústria busque atalhos (atravessadores, que geram gastos adicionais) para colocar seus produtos no mercado, com a conivência de gestores ou administradores, e como alternativas para aquisição de novos equipamentos e tecnologias que poderiam ser obtidos sem os desvios de recursos públicos.

Schneider (2013) reconhece sete pontos de inflexão nas instituições hospitalares: 1) gestão das admissões com alinhamento de valores (saúde e qualidade de vida); 2) gestão dos riscos: preservar a saúde dos funcionários (médicos, enfermeiros, assistentes etc.); 3) gestão dos afastamentos: gerir absenteísmos); 4) gestão do benefício previdenciário: evitar abandono do emprego e erosão de competências profissionais; 5) gestão do retorno à empresa: suporte à reinclusão profissional e social e reabilitação; 6) gestão do dano e/ou incapacidade dos empregados “doentes” com sequelas; 7) gestão das demissões: preservar valores pactuados na admissão de profissionais competentes. O desalinhamento desses pontos de inflexão pode conturbar a saúde das organizações hospitalares, em especial, das Santas Casas já tão gravemente adoecidas pela carência, principalmente de suportes financeiros e por gestões doentias.

É apropriado lembrar que, aqui, se discute a atuação das Santas Casas e suas carências e relações com o SUS dentro de sua historicidade. A pandemia recente gerada pelo Covid-19 trouxe novos e complexos ingredientes à atuação em Saúde e ao combate ao evento. O Governo Federal canalizou volumosos aportes financeiros para atender tal emergência, em que pesem seus limites, insuficiências, acertos e desacertos. No longo período da pandemia, a saúde pública no Brasil passou por momentos cruciais de sua história, e as Santas Casas e hospitais filantrópicos sofreram ainda mais diante da carência de equipamentos apropriados, medicamentos, insumos e de pessoal, sem deixar, no entanto, de cumprir sua missão: mesmo combalidas e sofrendo, fizeram a diferença nesse momento (FESHOP, 2020).

É sabido ainda que, dentre as dificuldades enfrentadas, se encontram os constrangimentos impostos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao determinar que o Governo Federal “não pode derrubar decisões de estados e municípios sobre isolamento social, quarentena, atividades de ensino, restrições ao comércio e à circulação de pessoas”, mesmo que tais proibições estivessem à revelia da Constituição Federal brasileira.Tal determinação do STF parece afastado toda ação e qualquer responsabilidade do Governo Federal, inviabilizando sua atuação direta no combate à pandemia. Pelo impedimento, o Governo Federal se viu de mãos atadas e lhe restou tão somente assumir repasses financeiros aos estados, municípios e Distrito Federal, que nem sempre direcionaram a seus verdadeiros fins, às necessidades sanitárias e às exigências da pandemia, desviando-os para outras finalidades ou mesmo “deles se apropriando” e penalizando, ainda mais e severamente, as Santas Casas, hospitais filantrópicos e seus usuários (VIVAS; MATOSO, 2020).

Ao se considerar o interesse divergente de tantos protagonistas envolvidos, porém, evidencia-se a resistência ao gerenciamento das possíveis mudanças direcionadas a profissionalizar a gestão e viabilizar melhoras nas condições de saúde das entidades hospitalares, reduzir atitudes corporativistas, promover a eficiência nos procedimentos, privilegiar a competência em detrimento da indicação ineficaz, aperfeiçoar o pessoal e atender aos usuários de forma humana, respeitosa e eficiente. Superar essas resistências estruturais de pessoal e as dissonâncias no ambiente de trabalho é o desafio ético do gestor responsável pela saúde ocupacional e assistencial, sem cuja equalização pode levar a instituição hospitalar a sofrer impactos e adoecer, fragilizando sua missão e acentuando a doença de seus usuários já tão fragilizados. Esse comprometimento não se refere apenas ao gestor, mas a todos os protagonistas envolvidos na saúde; deve-se primar, sempre, a ética, a honestidade de atitudes, a seriedade, a retidão, possibilitando reverter o cenário de dificuldades estratégicas e táticas para “desenhar um espectro” novo na assistência em saúde. Não se pode admitir que a entidade que deveria estar saudável para cuidar e tratar dos doentes esteja adoecendo por falta de amparo e suporte.

 

REFERÊNCIAS

 

 

BUSS, P. M.; LABRA, M. E. L. (orgs.). Sistemas de saúde continuidades e mudanças: Argentina, Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos, México e Québec. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 265 p.

 

COELHO, D. Capital humano. Secretaria de Educação, Pernambuco, 2014.

 

COSTA, J. C. N. Os desafios da gestão pública e privada nos hospitais [Internet], 10 out. 2012. Disponível em: http://www.femipa.org.br/noticias/artigo-os-desafios-da-gestao-publica-e-privada-nos-hospitais-jose-cleber-e-administrador-hospitalar. Acesso em: 24 dez. 2021.

 

FESHOP - Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo. Novo rumo. Feshop, ano XVIII, n. 269, jul./ago. 2020. Disponível em: https://www.fehosp.com.br/files/novo_rumo/bd8b864ec764a199c7d694a79a57ff12.pdf. Acesso em: 26 dez. 2021.

 

FREITAS, E. C.; BARTH, M. Profissionalização da gestão nas empresas familiares: estagnar ou inovar? G&DR, Taubaté, SP, v. 7, n. 3, p. 158-185, set./dez. 2011.

 

FREITAS, M. E. A gestão contemporânea está doente? In: VILARTA, R.; CARVALHO, T. H. P. F.; GONÇAVES, A.; GUTIERREZ, G. L. (orgs.). Qualidade de vida e fadiga institucional. Campinas: IPES, 2006, v. 1, p. 47-72.

 

LIMA-GONÇALVES, E. Condicionantes internos e externos da atividade do hospital-empresa. RAE-eletrônica, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, v. 1, n. 2, jul./dez. 2002.

 

MEDICI, A. C. Judicialização, integralidade e financiamento da saúde. Diagn Tratamento, v. 15, n. 2, p. 81-87, 2010.

 

ROSENFELD, D. L. Artigo no Estadão questiona: Se as Santas Casas fecharem, para onde irão os pacientes? O Estado de S. Paulo, Notícias, 8 de julho de 2019.

 

SCHNEIDER, E. L. Saúde nas Empresas: um modelo gráfico para identificar oportunidades de gestão.O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 37, n. 2, p 222-229, 2013.

 

VIVAS, F.; FALCÃO, M.; MATOSO, F. Ministro do STF proíbe governo federal de derrubar decisões de estados e municípios sobre isolamento [Internet]. TV Globo e G1. Brasília, 8 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/08/governo-federal-nao-pode-derrubar-decisoes-de-estados-e-municipios-sobre-isolamento-decide-ministro-do-stf.ghtml. Acesso em: 24 dez. 2021

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