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A CASA CHEIRA VELHO: O CHEIRO DA VELHICE

A CASA CHEIRA VELHO: O CHEIRO DA VELHICE

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

“Vovô, por que seus cabelos são branquinhos?”

Perguntas como esta, simples e diretas, são comuns às crianças, e podem surpreender exatamente por serem simples e diretas. Mas que significados possíveis têm os cabelos branquinhos do vovô? Afinal, a população está envelhecendo, e o envelhecimento comporta desafios enormes e inéditos e exige novas competências na atenção prestada ao idoso para proporcionar-lhe melhor qualidade de vida e bem-estar físico e psicológico: “a saúde biológica, a saúde mental, a satisfação, o controle cognitivo, a competência social, a produtividade, a atividade, a eficácia cognitiva, o status social, a renda, a continuidade de relações informais em grupos primários e rede de amigos” (YOKOYAMA; CARVALHO; VIZZOTTO, 2006, p. 60). Gutierrez et al. (2021) corroboram a ideia de que a longevidade, quando acompanhada de perdas cognitivas e funcionais, demanda cuidados especiais e permanentes, geralmente prestados em domicílio por familiares.

Identificado por diversas denominações (terceira idade, melhor idade, velhice, idade madura, entre outras), o envelhecimento requer profunda revisão dos valores, uma vez que, habitualmente, não se costuma valorizá-lo (BORGES; COIMBRA, 2010). A velhice, com suas peculiaridades, é compreendida a partir da relação estabelecida entre os diferentes aspectos cronológicos, biológicos, psicológicos e sociais; além disso, condições históricas, políticas, econômicas, geográficas e culturais desenham díspares representações sociais da velhice e do idoso.

Considera-se pessoa mais velha, ou idosa, quando atinge 60 anos, independentemente de seu estado biológico, psicológico e social, mas a “idade e o processo de envelhecimento possuem outras dimensões e significados que extrapolam as dimensões da idade cronológica” (SCHNEIDER; IRIGARA, 2008, p. 586).  O IBGE (2016, p. 13) aponta que, no Brasil, a proporção de adultos de 30 a 59 anos de idade aumentou, passando de 36,2% (em 2005) para 41,0% (em 2015), assim como a participação dos idosos de 60 anos ou mais de idade, de 9,8% para 14,3% no mesmo período, isto é, a população brasileira está envelhecendo rapidamente: estima-se que, daqui a cinco anos, o País terá mais idosos do que jovens.

O início do envelhecimento começa quando o indivíduo passa a ter lapsos de memória, dificuldade de aprendizado e falhas de atenção, orientação e concentração. No processo de envelhecimento normal, algumas capacidades cognitivas diminuem naturalmente, mas essas perdas podem ser compensadas por ganhos em sabedoria, conhecimento e experiência. O declínio cognitivo é provocado pelo desuso, doenças (como depressão), fatores comportamentais (consumo de álcool e medicamentos), psicológicos (falta de motivação, de confiança, baixas expectativas) e sociais (solidão e isolamento), mais do que o envelhecimento em si (WHO, 2005). Até mesmo o odor que o idoso exala é característico, um “cheiro de velho” (ALMEIDA, 2011)

O envelhecimento geralmente vem associado a doenças e perdas e pode ser visto apenas como um problema médico, com deterioração do corpo, decadência física e ausência de papéis sociais, com status reduzido devido à “ênfase contemporânea na juventude, beleza, autonomia, independência e na habilidade de ser produtivo ou reprodutivo” (SCHNEIDER; IRIGARA, 2008, p. 587). A sociedade parece recusar-se a olhar para seus idosos com mais atenção, por preconceito, por hedonismo, por cultivar a beleza física, sem rugas, sem calvície, sem cabelos brancos. Não há respeito nem cultura de reverência ao idoso, que carece de respeito, paciência e afeto: estar sarado faz parte da cultura, assim, o jovem é que é “bonito” (AGUIAR; MENEZES; CAMARGO, 2017).

É importante destacar as capacidades psicológicas (percepção, memória), que possibilitam prenunciar o funcionamento psíquico futuro do indivíduo. Ademais, as pessoas não se preparam para o envelhecimento e formam uma geração voltada para o aqui e o agora. Embora seja um construto social, na velhice florescem o abandono, o preconceito social e do próprio indivíduo que envelhece, e a discriminação. A velhice é colocada à margem dessa construção: as “pessoas querem viver muito, [mas] não querem ficar velhas nem se parecer com velhos” (SCHNEIDER; IRIGARA, 2008, p. 588).

Diferencia-se um jovem ou um adulto jovem de um idoso por sinais característicos do rosto, rugas e outras marcas que evidenciam a idade do indivíduo, assim como pelo cheiro, devido a mudanças no odor corporal ocorridas ao longo da vida. Um estudo de pesquisadores japoneses avaliou pessoas de três faixas etárias (jovens adultos, de 20 a 30 anos; indivíduos de meia idade, de 45 a 55 anos; idosos, de 75 a 95 anos) e revelou que as pessoas conseguem identificar a idade das outras pelo cheiro exalado pelo corpo: o “odor dos idosos é menos intenso e menos desagradável que o dos mais jovens. A concentração de substâncias químicas presentes no suor é o que varia ao longo da vida” (G1, 2012), devido à concentração da substância química 2-nonenal (encontrada no suor e pele), oriunda da decomposição de ácidos graxos e ômega-7, mais presentes na pele do idoso, aumenta à medida que se envelhece (BAIO, 2016). Sabe-se, também, que os odores corporais humanos interagem com glândulas da pele, secreções e atividades bacterianas e, nas pessoas idosas, o odor característico provém de um conjunto de alterações químicas, desaceleração do metabolismo, ingestão de medicamentos constante e estilo de vida (BAIO, 2016).

A maturidade produz mudanças no corpo refletidas principalmente na capacidade física, aparência corporal e cognição; gera impactos físicos, sociais (rejeição, desconsideração) e psicológicos (estados agressivos, depressivos, isolamento), afeta a autoafirmação, autonomia, independência, entre outros aspectos. Lima (2013, p. 142) afirma que, “ao perceber que as perdas de certas capacidades físicas e habilidades cognitivas, e na aparência corporal são, em sua maioria, irrecuperáveis, o sujeito pode entrar em um estado de desamparo”.

Na velhice, o ser amadurecido perde sua identificação e o sentido do próprio corpo. Aquele corpo conhecido na infância, na adolescência e na fase adulta, com o qual o indivíduo conviveu, transforma-se em outro corpo, diferente, alterado, muitas vezes combalido e vulnerável, mas estranhamente familiar. Até mesmo a capacidade de abstração, incluindo a possibilidade de lembrar cheiros, sensações e sentimentos que, agora, são inibidos, torna-se fluida com o tempo (GUTIERREZ et al., 2021). O olfato é uma forma de comunicação e interação das pessoas: “assim como outros animais, humanos conseguem extrair sinais de odores corporais, que nos permitem identificar a idade biológica, evitar indivíduos doentes, escolher o parceiro ideal e distinguir entre parentes e não parentes” (G1, 2012). O cheiro pessoal do idoso é singular e confere uma simbologia, isto é, um odor desagradável pode sugerir que se está sujo (“o cheiro do corpo é ruim”), enquanto a manutenção de uma “aparência esteticamente agradável, para si próprio e para o seu semelhante, assim como o desejo de atrair a admiração dos outros permanece e perpetua-se através da expressão da vaidade, utilizada no sentido visual /aparência da própria pessoa e o desejo de ser admirada” (ALMEIDA, 2011, p. 151).

O processo de envelhecimento se associa, ainda, ao maior risco de adoecer e desenvolver limitações, como perda da capacidade de cuidar de si e de sua vida, embora o desenvolvimento de dependência nas atividades de vida diária não seja considerado “normal da idade”. É importante realizar uma avaliação multidimensional do idoso sob um “novo olhar”, valorizar e “enxergar” os problemas biopsicossociais impressos na sua vida em busca da recuperação ou manutenção de sua autonomia e independência e melhor qualidade de vida: “sempre é possível melhorar alguma coisa”, ou “não piorar a vida deste idoso” (BORGES; COIMBRA, 2010). Devem-se buscar estratégias de promoção da saúde e prevenção de doenças, reconhecer síndromes geriátricas seguidas de intervenções multidisciplinares no sentido de recuperar e ampliar as capacidades funcionais do idoso. 

Envelhecer é tornar-se velho, e cuidar do idoso é cuidar do ser humano. Ao cuidar da pessoa idosa, a família passa por duas opções: reprivatizar o cuidado com o idoso, instalando-o em instituições de longa permanência (FAGUNDES et al., 2017), ou conduzi-lo ao seio familiar para que suas necessidades sejam mais bem atendidas. A família que cuida acompanha e ajuda o idoso nas atividades que não consegue executar sozinho: cuidar não é “fazer pelo outro, mas auxiliá-lo quando ele precisa, estimulando a sua autonomia [e independência], mesmo que em pequenas atividades” da vida diária (AGUIAR; MENEZES; CAMARGO, 2017, p. 2), tais como comer, caminhar, realizar suas necessidades fisiológicas e higiênicas, algumas tarefas domésticas, atividades sociais e de lazer (BORN, 2008, p. 72).

Todavia, nem sempre a família exerce a responsabilidade dos cuidados com o idoso e cria situações de abandono ou asilamento, que traz reflexos na perda de afetos (do companheiro, filhos, familiares, amigos). O abandono associa-se a situações de fragilidade, incapacidade funcional gradativa e dependência. Do abandono resultam sentimentos de tristeza, solidão, causados pela ausência de relações afetivas e sociais, distanciamento e isolamento social (HERÉDIA; CASARA; CORTELLETTI, 2007).

Para o idoso, a admissão em instituição de longa permanência para idosos (ILPI), ou asilamento, pode representar a ruptura definitiva dos laços afetivos, a sensação de desamparo total (BERTOLIN; VIECILI, 2014) e o estabelecimento de um novo estilo de convivência comunitário com outros idosos, devendo adaptar-se para continuar vivendo. Todavia, a ausência de pessoas afeiçoadas, de calor humano da família e das amizades torna esse convívio uma etapa de sofrimento e solidão (FAGUNDES et al., 2017). O asilamento pode decorrer de vários motivos: limitações físicas e mentais, abandono pela família, incompatibilidade de gênios/conflitos familiares, desajustamento social, sem moradia própria, falta de recursos para manter-se e morar sozinho, agravamento da saúde e necessidade de ser assistido, ter mais oportunidade de socialização, inexistência de familiares ou de cuidadores, desejo de independência (LINI; PORTELLA; DORING, 2016).

Os familiares, embora possam sentir-se desencorajados pelas dificuldades diárias ou pela sobrecarga, cansaço e responsabilidade assumida, “tendem a cuidar de seus idosos com amor e prazer, revelando que a relação de cuidado é fortalecida pelo afeto” (AGUIAR; MENEZES; CAMARGO, 2017, p. 3). Se os laços afetivos não forem, porém, suficientemente fortes, cuidar do idoso passa a ser uma obrigação, não uma expressão de afetividade (BORN, 2008). No ato de cuidar permeiam sensações que se interpenetram: sentimentos de entrega, reciprocidade, gratidão e satisfação pelo dever cumprido (GUTIERREZ et al., 2021). Ao cuidar do idoso, os familiares constroem sentidos para o cuidar, desvelados por “meio do amor, carinho, dedicação, admiração, orgulho, paciência e respeito. Acredita-se que esses significados simbólicos são frutos das interações estabelecidas [...] que significam e ressignificam o cuidado dispensado à pessoa idosa” (AGUIAR; MENEZES; CAMARGO, 2017, p. 5).

O corpo envelhecido pode “cheirar mal”, parecer “sujo” e é, muitas vezes, ignorado: sem receber palavras, olhares, toques, cheiros e afetos que dão solidez ao corpo, abre-se uma via para a morte em vida. Relembrando Baio (2016), não se deve culpar nem se assustar se, em alguma ocasião, diante de um idoso, emergir um odor ligeiramente rançoso, ou mais agradável que o dos jovens sarados. Nem sempre é falta de asseio: esse odor pode ser real, mas não indecoroso. Antes, imitem-se os nipônicos, para quem os idosos merecem total respeito, paciência, afeto e reverência pela sua experiência e sabedoria, mesmo diante de um cheiro que pareça desagradável. 



Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com


REFERÊNCIAS


AGUIAR, A. C. S. A.; MENEZES, T. M. O.; CAMARGO, C. L. Significado do cuidar de pessoas idosas sob a ótica do familiar: um estudo interacionista simbólico. REME Rev Min Enferm., n. 21, p. e-1004, 2017. 7 p.


ALMEIDA, M. L. F. Autocuidado e promoção da saúde do idoso. 211. 337 f. Tese (Doutorado em Ciências da Enfermagem) – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto, Porto, Portugal, 2011.


BAIO, C. O que causa e por que os idosos têm um cheiro diferente? [Internet], 16 ago. 2016. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2016/08/16/clique-ciencia-o-que-causa-e-por-que-os-idosos-tem-um-cheiro-diferente.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 7 jan. 2022.


BERTOLIN, G.; VIECILI, M. Abandono afetivo do idoso: reparação civil ao ato de (não) amar? Revista Eletrônica de Iniciação Científica, Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas da UNIVALI. v. 5, n. 1, p. 338-360, 1º trim. 2014.


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BORN, T. (org.). Cuidar melhor e evitar a violência - manual do cuidador da pessoa idosa. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2008. 330 p.


FAGUNDES, K. V. D. L.; ESTEVES, M. R.; RIBEIRO, J. H. M.; SIEPIERSKI, C. T.; SILVA, J. V.; MENDES, M. A. Instituições de longa permanência como alternativa no acolhimento das pessoas idosas. Rev. Salud Pública, v. 19, n.  2, p.  210-214, abr. 2017. 


G1, São Paulo. Idade pode ser detectada pelo cheiro, diz estudo [Internet], 31 maio 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/05/idade-pode-ser-detectada-pelo-cheiro-diz-estudo.html. Acesso em: 6 jan. 2021.


GUTIERREZ, D. M. D.; SOUZA, G. S.; FIGUEIREDO, A. E. B.; RIBEIRO, M. N. S.; DINIZ, Cl. X.; NOBRE, G. A. S. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 1, p. 47-56, 2021.


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