Estamos chegando ao fim de um ciclo na esfera do presidencialismo, batizado, como sabemos, pelo dito franciscano: é dando que se recebe. A constatação é auspiciosa se levarmos em conta que, ao se fechar a bodega das trocas, outro sistema político poderia florescer, algo como um parlamentarismo à moda portuguesa ou mesmo à francesa. O primeiro-ministro governa com o Parlamento, deixando ao presidente as funções de representação do Estado, condição que ganha impulso na crise contemporânea.
Sabemos, no entanto, quão difícil é estabelecer uma nova ordem política em nossas plagas, em consequência do longo trajeto presidencialista, moldado ainda numa forte herança cultural. O sociólogo francês Maurice Duverger chega a lembrar o gosto latino-americano pelo sistema presidencialista, o qual, em sua visão, tem a ver com o aparato monárquico na região. O vasto e milenar império inca, com seus caciques, e depois o poderio espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, teriam direcionado a inclinação para regimes de caráter autocrático.
O nosso presidencialismo agrega boa dose de autocracia. O executivo chega a criar um amontoado número de leis que, algumas vezes, supera a quantidade produzida pela casa que devia fazê-las, o Legislativo. Já na Europa, o parlamentarismo teria se inspirado na ideologia liberal da Revolução Francesa, cujo alvo era a derrubada do soberano. O fato explica a frieza europeia sobre o modelo presidencialista. A disposição monocrática de exercer o poder apareceu no Brasil desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 – que absorveu princípios da Carta americana de 1787 –, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País passou por ligeira experiência parlamentarista.
O presidencialismo, sob essa configuração, está entronizado no altar da cultura política. O poder que dele emana impregna a figura do mandatário, elevando-o à condição de pai da Pátria, protetor, benemérito. Por conseguinte, essa cadeia de mando corre de cima para baixo, do presidente da República para governadores e prefeitos. No caso brasileiro, nos últimos tempos, vimos uma realidade ancorada no "parlamentarismo de ocasião", concretizado pelo lema: ou o presidente dá o que nós queremos, ou não aprovará nada no Parlamento. Grupos parlamentares, como o Centrão, tomam as rédeas do Executivo.
Costumo lembrar outra herança que finca as estacas presidencialistas em nosso roçado. A estadania. O sociólogo inglês Thomas Marshall argumenta que os ingleses construíram sua cidadania abrindo, primeiro, a porta das liberdades civis, depois, a dos direitos políticos e, por fim, a dos direitos sociais. Entre nós, Getúlio abriu, primeiro, a porta dos direitos sociais. Basta ver o apoio que deu ao sindicalismo. Adensa legislação social (benefícios trabalhistas e previdenciários) foi implantada entre 1930 e 1945, sob a castração de direitos civis e políticos. Portanto, o civismo e o sentimento de participação ficaram adormecidos por muito tempo no colchão dos benefícios sociais. Em lugar da cidadania, forjamos a estadania. Sob essa configuração, o parlamentarismo só tem chance de se instalar sob o desgaste dessa modelagem de viés franciscano.
Sabemos que o fardão presidencialista só será modernizado ante uma intensa e continuada campanha de comunicação. Sem o apoio da sociedade, não sairemos do lugar. O rolo compressor comprimiria a política personalista. Formaríamos gigantesca estrutura comprometida com o bem comum. Coisa difícil, pois o bem da coletividade passa pela filtragem personalista, a marca pessoal. A ação institucional quase sempre é precedida pela louvação do mandatário. Fulanos e sicranos dão o tom da política e da administração pública, imprimindo à orquestra o seu compasso. Alas se formam no interior de estruturas, matizes políticos dão o tom de operações e a algazarra do espetáculo acende fogueiras. A querela se espalha pela teia dos Poderes. Esse aparato teria de ser desmontado. O que fazer com a massa contenciosa que agita atores?
A resposta aponta para a obviedade: cumprir o dever nos limites prescritos pela lei, despir-se de vaidades, usar o bom senso para evitar duplicação de tarefas e, por fim, profissionalizar as estruturas, deixando-as imunes aos partidarismos. Os Poderes devem ocupar os espaços que lhes cabem. Sem mais nem menos.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato