ARTIGO

IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE FERNANDÓPOLIS: UMA HISTÓRIA DE COMPROMISSO COM A SAÚDE

IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE FERNANDÓPOLIS: UMA HISTÓRIA DE COMPROMISSO COM A SAÚDE

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

Certamente, o poder público não possui estrutura e condições para assegurar, em sua totalidade, o pleno atendimento da população que demanda serviços de saúde, garantido no texto constitucional de 1988. Assim, cria a possibilidade de contratar serviços de saúde da esfera privada de forma a complementar a rede pública de atendimento, “priorizando a contratação de serviços de entidades filantrópicas e sem fins lucrativos”, que inclui as Irmandades das Santas Casas (de Misericórdia). Instituições muitas vezes centenárias, com atividades filantrópicas e de caridade, as Santas Casas passam a prestar serviços remunerados pelo Estado (OLIVEIRA; SACOMANO NETO; DONADONE, 2022, p. 2), merecendo destaque o atendimento “ao contribuinte”, “ao indigente” ou simplesmente “gratuito”, cumprindo o espírito que marca a filantropia.

A assistência à saúde coletiva no Brasil tem, no Estado e na filantropia, uma associação recorrente, geralmente prestada por hospitais filantrópicos, em sua maioria representados por Irmandades de Santas Casas de Misericórdia. É oportuno esclarecer, de início, o que é uma irmandade e a que serve. Ferreira (1999, p. 1137) define irmandade, do latim germanitate, como “[1] parentesco entre irmãos; [2] associação de caráter religioso; confraria; [3] união ou intimidade fraternal; confraternidade”. Irmandade representa união, associação com fins determinados. Na área da saúde, trata-se de uma instituição cuja missão está voltada para o tratamento e sustento a enfermos e inválidos, além de dar assistência a “expostos”, como recém-nascidos abandonados na instituição. Uma Santa Casa se orienta, em sua origem, pelo compromisso de praticar a Misericórdia que compreende obras com fundamentos cristãos: a espiritualidade (ensinar os simples, dar bons conselhos, consolar os tristes, perdoar as ofensas, sofrer com paciência, orar pelos vivos e pelos mortos) e a corporalidade (visitar enfermos e presos, remir os cativos, vestir os nus, dar de comer aos famintos e de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e enterrar os mortos). Uma irmandade não precisa ter uma instituição física para realizar obras de natureza filantrópica.

Diversos são os tipos de irmandades: pode-se dizer que existem irmandades dos gays (como a veiculada pelo “seu Peru” na conhecida Escolinha do Professor Raimundo), dos predadores humanos (estupradores, pedófilos, narcotraficantes etc.), dos frequentadores de bares para rodadas de cerveja, e outras tantas – ações radicalmente diferentes das Irmandades das Santas Casas com fins filantrópicos e como local de acolhimento e humanização que têm, preponderantemente, a missão nobre de tratar e curar os que suportam sofrimentos físicos ou mentais. Rosenfeld (2019) pontua que “as Santas Casas de Misericórdia no Brasil são verdadeiramente ‘santas’”, porque prestam inestimável serviço à população, principalmente àqueles que sofrem, sem receber, em contrapartida, a remuneração (material ou imaterial) devida correspondente ao seu trabalho e mérito. Além disso, muitas vezes têm de enfrentar achaques, desconsideração, incompreensão e falta de reconhecimento de seu trabalho profícuo e humano em prol dos desfavorecidos e desvalidos, daqueles que carregam sobre si sofrimentos tantos. Contraditória e desumanamente, são desqualificadas e recebem, com frequência, embates e juízos preconceituosos ou jocosos, que menosprezam ou ridicularizam seus fins ou sua missão. Apesar do escárnio de muitas pessoas desapiedadas, inumanas, perversas, cruéis, inclusive de autoridades que deveriam zelar e contribuir para seu engrandecimento, as Irmandades das Santas Casas continuam a prestar auxílio indispensável aos que sofrem e clamam por ajuda. 

No Brasil, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia surgiu ainda no período colonial, a partir de meados do século XV, destinada a atender aos enfermos dos navios dos portos e moradores das cidades. Entretanto, não se pode destacar nenhuma prática como científica, por que esses saberes só emergiram no país a partir da vinda da Corte portuguesa e da criação das faculdades de Medicina e de Direito. Atualmente, no Brasil, existem mais de 2.500 hospitais da Santa Casa, cuja obra está presente em quase todas as capitais e em inúmeros municípios do interior do país. As Irmandades das Santas Casas desempenham seu nobre e árduo papel, ainda que, muitas vezes, de forma precária ou ineficaz, e confirmam a precedência da Misericórdia como uma das principais confrarias, aqui entendidas como associações laicas que funcionam sob princípios religiosos cristãos e humanos, concretizados fundadas por pessoas piedosas que se “comprometem a realizar conjuntamente práticas caritativas, assistenciais etc.” (FRANCO, 2014, p. 10). A presença de uma irmandade como a da Santa Casa tende a esparzir e garantir luz às pequenas e frágeis povoações, carentes de instituições que as possam assistir. Luz (2016) lembra que, em meio às possibilidades de promoção social e atendimento à saúde, sobressaem as associações fraternais, com o papel marcante e atuante das Irmandades, muitas vezes incompreendidas pelos usuários e – o que é mais doloroso – por autoridades que sequer se dignam a conhecê-las, mas as criticam, escarnecendo-as ou delas zombando. Não hápor que desqualificar ou imputar pejorativos à atuação das Irmandades das Santas Casas de Misericórdia, como ocorre tantas vezes por meio de pessoas incautas e maldosas, que deveriam conhecer, de forma mais aprofundada, e valorizar o trabalho dessas entidades. Freitas e Barth (2011) frisam que essas instituições sempre foram e continuam sendo o maior parceiro do Governo, a um custo insignificante, na luta constante da preservação da saúde das pessoas. Afiançam que, hoje, de modestas e simples Casas de Saúde que eram as Santas Casas, para poderem acompanhar o progresso e não ficarem paradas no tempo e no espaço, tornaram-se uma empresa e, como tal, têm de ser assim administradas e guiadas por uma gestão profissionalizada e inovadora, sob pena de sucumbirem.

A história da Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis remonta aos idos de 1948 quando a comunicação precária criava um grande problema para Fernandópolis: a dificuldade de atendimento médico nos distritos e povoados, sendo necessário financiar a visita de médicos às povoações no entorno da cidade sede, Fernandópolis. Em 1º de janeiro de 1948, um “grupo de pessoas benfeitoras da cidade [em torno de 110] se reuniu com o objetivo de fundar a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis, que se encarregaria da criação de um hospital para a vila que crescia. Dessa reunião nasceu a 1° comissão encarregada de angariar donativos para a Santa Casa” (RENESTO; GOMES, 2012, p. 379). Fundada em 1º de fevereiro de 1948, teve suas atividades iniciadas em 28 de fevereiro de 1956. De natureza filantrópica, tem a finalidade de prestar atendimento à comunidade local, regional e interestadual, integrada à DRS – XV de São José do Rio Preto.

Em Fernandópolis, desde 1949, já funcionava, em condições precárias devido à ausência de infraestrutura adequada (faltavam água e luz, por exemplo), o Hospital Nossa Senhora das Graças (hoje, Central da Saúde) de propriedade de alguns médicos (PESSOTTA et al., 1996). Em 1951, germinaria, de fato, o embrião que viria a desencadear as primeiras ações para a construção da casa: formadas a primeira comissão e diretoria para angariar fundos, os resultados foram frágeis e não atingiram o que se esperava devido a suspeitas de desvios das doações (PESSOTTA et al., 1996, p. 58).

A inauguração da Santa Casa em 26 de fevereiro de 1956 foi um evento de grande repercussão na comunidade que, a partir daí, poderia “contar com uma bem-aparelhada instituição para cuidar de sua saúde e médicos” (MACEDO, 2012, p. 35). No início de seu funcionamento, a enfermagem da Santa Casa era assistida, preponderantemente, por “freiras chefiadas pela Irmã Margarida, enérgica, inteligente e capaz” (RENESTO; GOMES, 2012, p. 382), além de contar com médicos que se tornariam conhecidos pela sua dedicação. Hoje, a Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis é entidade referência na prestação de serviços e de assistência em saúde, contando com Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos (Processo MAS-CNAS nº 71.010.000110/2003-51), com 139 leitos (85,9%) contratados pelo SUS do total de sua capacidade de 162 (dados aferidos até 2012).Também se posiciona como Hospital Estratégico do Ministério da Saúde – Integrasus Nível “C”– Portaria nº GM/MS nº 878 de 08/05/2002 anexo II e Hospital Estratégico do SUS/SAS – Portaria GM/MS nº 2.256 de 10/12/2002, além de ser reconhecida como hospital-escola e campo de estágio de medicina (RENESTO; GOMES, 2012).

Deve-se, pois, enlevar o início e a caminhada da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis, por sua trajetória marcada por esforços e dedicação dos profissionais da saúde que atuam na minimização ou eliminação das dores e dos sofrimentos dos usuários que demandam seus serviços. Os caminhos iniciais, se, eventualmente, tomaram outras direções, acompanharam o crescimento da cidade e o surgimento de novas demandas da população. Todavia, muito antes de ser criticada ou depreciada em sua existência e atuação, deve ser reconhecida e valorizada pelo seu trabalho, em que pesem tantas e tamanhas vicissitudes adversas: que se deem o respeito e a admiração à Instituição e aos profissionais que nela atuam, considerando-se a ética e o apreço de que é merecedora, mesmo tendo de enfrentar deficiência de recursos e adversidades advindas, inclusive, de más gestões na produção de saúde, as quais precederam os tempos atuais


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

CARVALHO, C. V.A situação das Santas Casas de Misericórdia. Biblioteca digital da Câmara dos Deputados. Estudo. Brasília, DF, Câmara dosDeputados, Praça dos Três Poderes, 2005. 


FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da línguaportuguesa. 3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. p. 1137. (verbete: irmandade).


FREITAS, E. C.; BARTH, M. Profissionalização da gestão nas empresas familiares: estagnar ou inovar? G&DR, Taubaté, SP, v. 7, n. 3, p. 158-185, set./dez. 2011.


LUZ, I. M. Irmandade e educabilidade: um olhar sobre os arranjos associativos negros em Pernambuco na primeira metade do século XIX. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 32, n. 3, p. 119-142, jul./set. 2016.


OLIVEIRA, A. L. M.; SACOMANO NETO, M.; DONADONE,J. C. O papel da Santa Casa no sistema público de saúde brasileiro: o levantamento histórico de uma instituição filantrópica.Saúde Soc., São Paulo, v.31, n. 1, p. e200150, 2022. 10 p.


PESSOTTA, A. J.; SUGAHARA, Á. M. A.; COSTA, R. M. S.; RENESTO, W. (orgs.). Fernandópolis, nossa história, nossa gente. 1. ed. Fernandópolis: Editora Bom Jesus, 1996. v. 1. 326 p.


MACEDO, J. B. (coord.). PREFEITURA de Fernandópolis. Fernandópolis, nossa história, nossa gente. 1. Ed. Prefeitura de Fernandópolis: Editora Anglo, 2012. v. 2, 764 p. 


RENESTO, W. F.; GOMES, W. A. F.Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis. In:MACEDO, J. B. (coord.). PREFEITURA de Fernandópolis. Fernandópolis, nossa história, nossa gente. 1. Ed. Prefeitura de Fernandópolis: Editora Anglo, 2012. v. 2, p. 379-389.


ROSENFELD, D. L. Artigo no Estadão questiona: se as Santas Casas fecharem, para onde irão os pacientes?O Estado de S. Paulo, Notícias, 8 de julho de 2019.


SILVA, M. R. B.História da assistência hospitalar em São Paulo: a subvenção do Estado às misericórdias paulistas. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, v. 26, n. 1, Supl., p. 79-108, 2019. 


últimas