Por: Gil Piva
“Terroristas do Milênio” (ou O Fator Bolsonaro)
J. G. Ballard causou (acertadamente) perplexidade quando publicou, em 1973, seu livro Crash, que ficou mais conhecido pela versão cinematográfica de Cronenberg (1996).
Mas é no seu Terroristas do Milênio que vemos um Ballard mais verdadeiro e atual – e por isso mais importante que Crash. O livro é de 2005, mas só agora fiz sua devida leitura. Uma leitura que considero tardia em partes, porque, de certo modo, a presença atual de fortes ideologias políticas deu ao seu tema uma dimensão histórica precisa e urgente.
Ballard, no livro, imagina uma revolta da classe média britânica, que se considera os novos pobres negligenciados; no início, são ações pequenas; mas como toda revolta, os atos perdem-se quando as hesitações desaparecem, e, assim, barricadas para automóveis e pequenas invasões a propriedades particulares ganham contornos maiores, e as consequências, claro, virão.
Aliás, ironia das ironias, tais consequências são fruto de decisões mal pensadas e pouco planejadas - um lado descabido que os manifestantes de Ballard têm orgulho de defender. Exemplo disso está na fala de um dos personagens, líder da “revolução”, que a certa altura diz: “A violência deve ser sempre gratuita, e nenhuma revolução séria deveria atingir jamais seus objetivos.” Se o leitor sentiu no ar um deslize meio paradoxal nesse pensamento, asseguro que não está enganado.
Os revoltosos acreditam enfrentar a burguesia e sua maneira de “docilizar” as necessidades sociais. Esse é o tipo de reflexão que de cara atribuímos aos grupos mais desajuizados da esquerda. Opiniões e discordâncias à parte, a ironia das ironias, como disse, está em Ballard ressuscitar esse ideal nos lábios de manifestantes “liberais”.
O desenredo da história é costurado por contradições. Nesse quesito, a semelhança com as manifestações e pensamentos bolsonaristas é irretocável; portanto, essa realidade inseparável do romance torna a leitura não só mais divertida como intrigante.
Não se pode negar que o livro, devido à trupe “neoliberal” e “conservadora” espalhada pelo Brasil afora, tem, hoje, maior peso crítico à sociedade e seu comportamento extremado. Não seria esse extremo algo fluido - de tão ridículo - e corrosivo - de tão extravagante - porque termina por conspirar contra si? Do mesmo modo que a esquerda já fez? Vamos a um exemplo recente e concreto.
Depois que um vídeo do Bolsonaro discursando numa Loja Maçônica veio a público, a ala evangélica mais radical atacou o presidente, questionando até sua real “fidelidade a Deus”. E os maçons que votam nele devem ter compreendido o mais óbvio: foram atacados pelos seus irmãos políticos.
O “fator Bolsonaro” é uma corrosão substancial das ideias progressistas e liberais. Perdidos no contrassenso de suas próprias ideias pantanosas, as consequências do episódio da Loja Maçônica realçam a fantasia selvática de estarem lutando contra um comunismo que inexiste no Brasil. O reacionarismo bolsonarista desconhece suas causas e implicações.
Na autêntica moral bolsonarista - como os terroristas de Ballard -, o episódio é uma prova de que os asseclas do “Messias” terminaram por seguir à risca um mandamento de um dos livros que mais adoram citar quando enchem a boca para atacar o comunismo: A Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell - ou Os Animais da Fazenda, segundo outras traduções.
Eis o mandamento que Orwell sábia e criativamente nos legou: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.”
A sociedade democrática sempre estará em crise se o pensamento político (dos governantes e dos eleitores) for uma prática de ideias vazias. Afinal, as ideias vazias - estejam onde estiverem, na esquerda ou na direita - inutilizam os homens.
Hoje, o fator Bolsonaro é a formulação contumaz da desordem (nem a esquerda petista chegou tão perto): sua violência e crimes contra o Estado de Direito deixaram a sociedade brasileira muitos degraus abaixo da civilização.
Neste segundo turno, é hora de voltarmos para a civilização.
Imagem: Ilustração/Reprodução
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