Da mesma forma como o processo saúde-doença envolve fatores que podem estar relacionados com a manutenção/promoção da saúde e processos de adoecimento, em geral fundamentados em uma abordagem materialista, de natureza física, a expressão da subjetividade se associa a aspectos cognitivos e emocionais, que também podem ser determinantes da saúde e da doença e vincular-se à expressão do indivíduo no mundo (CRUZ; PEREIRA JR., 2011). A expressão se associa às manifestações visíveis ou sensíveis, que podem ser representadas pelo corpo que fala e, mais propriamente, pela linguagem (corporal, física, visível, audível).
Sabe-se que o sistema nervoso autônomo responde pela coordenação do funcionamento de todos os órgãos internos, regulado pelo sistema límbico, o qual sofre interferência das experiências afetivas e emocionais do indivíduo em seu contexto social (CRUZ; PEREIRA JR., 2011). A psiconeuroimunologia, que estuda as interações entre o sistema neuroendócrino, imune e os aspectos psicológicos e comportamentais, trouxe à luz que o sistema imune influencia e é influenciado pelo cérebro. Nesse sentido, Marques-Deak e Sternberg (2004, p. 143) associam emoções e doenças, o que explicaria que uma “variedade de estressores físicos e psicossociais podem alterar a resposta imune através dessas conexões”. Esse fato é justificado pelos avanços em biologia celular e molecular, genética, neurociências e em estudos de imagem cerebral, os quais desvendaram as diversas conexões entre os sistemas neuroendócrino, neurológico e o sistema imunológico e, em decorrência, entre emoções e doenças.
Parte-se da ideia de que, por meio do ato expressivo da linguagem (oral e não oral), se consegue desvelar o desconhecido, declarar insatisfação, contentamento, excitações emocionais (que podem estar associadas aos instintos) como raiva, medo, amor, alterações subjetivas e objetivas (atitudes e fisionomia) manifestas pela respiração, circulação e outras funções orgânicas específicas. Sem o ato expressivo, não se conseguem estabelecer agenciamentos, relações de troca, vivências, conflitos, soluções, compartilhamentos (CRUZ; PEREIRA JR., 2011). A expressão é responsável pela criação e transformação das múltiplas identidades, pelo reconhecimento de si e do outro, pela possibilidade de o indivíduo se expressar, pela aquisição de conhecimento, e viabiliza diversos tipos de experiência.
A expressão se realiza por meio da linguagem verbal e não verbal. Não se pode dizer que exista integração total concluída de forma completa entre corpo e subjetividade, uma vez que essa integração está em processo de construção contínua, isto é, sempre em andamento (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). Outrossim, não se pode olhar para o aspecto físico nem para os sentimentos e emoções de forma isolada. Deve-se olhar, simultaneamente, para as sensações (subjetivas) e reações corporais implicadas na vivência das experiências. Não se olha para uma pessoa portadora de câncer, por exemplo, sem que se observem suas emoções e vivências psicológicas. Ou não se olha para uma pessoa que passa por um momento de raiva, sem que se olhem suas expressões corporais.
Deve-se “experienciar”, perceber/sentir o organismo como um todo: se a tristeza (emoção, portanto, elemento subjetivo, interno) gera um forte aperto no peito, esta experiência também é vivida pelo corpo físico; a sensação de alegria, oposta à tristeza, igualmente inocula o corpo físico. Cada emoção, positiva ou negativa, vem acompanhada de sensações internas e reações corporais no indivíduo e devem ser consideradas.
Emoção é um componente significativo na fala e expressão corporal. Pode ser entendida como uma “condição complexa e momentânea que surge em experiências de caráter afetivo, provocando alterações em várias áreas do funcionamento psicológico e fisiológico, preparando o indivíduo para a ação” (MIGUEL, 2015, p. 153).
As emoções expressam afetos. Vêm acompanhadas de reações do organismo: intensas ou breves, mais densas, duradouras ou comedidas, respondem pelo inesperado, surpreendente, fantasiado (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001). As emoções, como afetos, assim experimentadas, revelam-se em expressões corporais, orgânicas que podem escapar ao controle da pessoa. É importante, pois, conhecer-se e conhecer seus afetos e sensações físicas/corporais que têm origem na emoção muitas vezes esquecida no afã do cotidiano: emoções e corpo são interdependentes e interferem na ação do indivíduo, no modo como ele age.
A vivência das emoções, principalmente quando reprimidas ou não manifestas (isto é, extremamente controladas), pode, de imediato ou mais tardiamente, eclodir em reações ou implicações corporais bem diversas, tais como tremores, sudorese, falta de ar, taquicardia, boca seca, dor de barriga, tensão muscular, até mesmo doenças cardiovasculares ou infecciosas, câncer, entre outras. Martins e Volpi (2016, p. 6) consideram que as “tensões musculares são provenientes do congelamento de emoções [e sensações] refletidas no corpo”; o reflexo desse congelamento “surge diante da necessidade de expressá-las, quer seja de forma verbal ou corporal”.
As reações também podem expressar-se em afetos subjetivos ou estados emocionais (tristeza, alegria, surpresa, medo, nojo, raiva), mudanças corporais típicas (físicas e fisiológicas, como sudorese, dilatação das pupilas ou alteração do batimento cardíaco e da respiração) e reações comportamentais (que incluem expressões faciais típicas das seis emoções básicas – alegria, medo, surpresa, tristeza, nojo e raiva –, alterações na voz, na postura e até na movimentação). Essas reações, físicas ou emocionais/subjetivas, podem ou não ocorrer simultaneamente (MIGUEL, 2015).
Nahas (2017) pontua que emoções reprimidas (não manifestas, encarceradas) tendem a potencializar sensações físicas desagradáveis, doenças crônicas e alterações hormonais e estresse. O autor reforça, por exemplo, que diversas doenças aparecem associadas aos quadros de estresse, como doenças cardíacas, que “comprovadamente têm o estresse como um dos fatores de risco”, e “situações de agressividade e frustração, tristeza e sensação de impotência, que podem acabar somatizadas na forma de diversas doenças”. Do estresse, frequentemente resultante de forte tensão emocional (ALVES, 2011) ou de emoções reprimidas, não verbalizadas nem expressas, ainda podem advir outras manifestações como dor de cabeça, dores musculares e articulares, insônia, ansiedade, irritabilidade, cansaço constante, sensação de incapacidade, perda de memória e mau humor.
Quando se contém a expressão do próprio ser no mundo, contêm-se as manifestações mais lídimas que ele possui, mesmo que, em muitas ocasiões, a expressão veicule conteúdos contraditórios. Embora a expressão se manifeste, mais comumente, por meio da oralidade, entendida como a verdadeira substância da comunicação (MUSSIO, 2015), constituída pelo fenômeno da interação verbal, não se deve, jamais, menosprezar a linguagem corporal, não verbal, que complementa várias funções básicas da comunicação verbal (OLIVEIRA, 2010).
O corpo, como expressão social, marca a presença do indivíduo no mundo, diante dos outros. O corpo é o lugar do desejo e do infortúnio, “depositário silencioso de todas as nossas emoções, inquietudes e projetos de vida” (SANTANA, 1998, p. 24). Conforme Merleau-Ponty (2018), assim como o corpo de alguém percebe o mundo como sistema de abordagens sobre o mundo, o corpo do outro também o percebe segundo suas condutas simbólicas e da conduta do que supõe como verdadeiro, em comunicação intersubjetiva ou objetiva, como representação das ansiedades e imperfeições, deficiências e possibilidades de superação do corpo.
O corpo representa a reflexividade (MERLEAU-PONTY, 2018): a experiência do corpo, pela expressão, se propaga e se repete na relação com as coisas, com os outros, com o mundo e com os significados desse mundo, de forma sensível e simultânea. Vetar a expressão do mundo pessoal (objetivo e subjetivo) é interromper a expressão de vivências pessoais com o mundo, impedir a criação e recriação, a reinterpretação, a própria expressão do ser em mútuas alterações (mundo interno e mundo externo). Deixar de expressar-se no mundo é negar um “campo de presença” no mundo das significações sensíveis e das relações da vida perceptiva e do mundo sensível. Calar é abster-se de conhecer as expressões do outro, que também tem vivências e emoções (choro, riso, sonho, criação, fantasia, história, herança, afeto, necessidade do abraço do outro para viver). Weil e Tompakow (2015) acentuam que o corpo fala por meio de uma expressão verbal ou por uma linguagem silenciosa da comunicação não verbal: o corpo é um instrumento de comunicação que se expressa na fala, nos gestos, nas ações, nas intenções, nos impulsos, embora a linguagem corporal só traga “significados dentro de um contexto”. Conhecer os sinais humanos da expressão corporal ajuda em uma comunicação mais eficaz, porque revela estados de “tensão, rejeição, aprovação, alegria e uma infinidade de outras mensagens”, assim como pode “desmentir o que a pessoa fala, ou seja, discordar” daquilo que foi veiculado pela comunicação verbal (OLIVEIRA, 2010, p. 12).
Mesmo quando se expressam os sentimentos por meio da fala, deve-se abrir para a expressão dos sentimentos com o corpo. Caso não se consiga falar sobre o que sente com palavras, o corpo assume o papel de principal meio da expressão. Não se podem calar as sensações e sentimentos, porque os resultados da interrupção da expressão (verbal e não verbal) aparecem no corpo físico que se queda aviltado. Merece destaque a importância das formas de expressão do corpo, que “podem mascarar causas e sintomas mais sérios”. Estas formas de expressão tendem a resultar da “pressão emocional causada pela necessidade de adaptação a situações novas, inesperadas ou que exijam demais” do indivíduo e provocar respostas psicossomáticas, como estresse, fadiga, depressão, ansiedade (PEREIRA; GOUVÊA, 2016, p. 188).
A pessoa deve ser vista, portanto, como composta de um conjunto complexo de estruturas (fisiológica, psicológica, social, espiritual e emocional), inter-relacionadas e interdependentes: deve conquistar e manter uma homeostase constante – o equilíbrio natural do corpo, com capacidade de autorregulação; deve olhar a doença, as expressões corporais e as emoções vivenciadas sob a ótica de busca do equilíbrio (corpo/mente).
As emoções, tanto quanto as sensações corporais vividas, devem ser reconhecidas. As emoções desempenham um papel essencial nos relacionamentos e na manutenção do valor ou da dignidade em situações sociais. Quando positivas, como amor, alegria, satisfação e respeito, as emoções tendem a aproximar pessoas e estimular vínculos interpessoais. Quando negativas, como raiva, dúvida, culpa, as emoções podem prejudicar os relacionamentos. Nessa esfera, porém, o importante é a equidade, a proporção das expressões emocionais, posto que é de bom alvitre não as considerar essencialmente boas ou ruins (GOLEMAN, 2011).
Importa reconhecer que as emoções tanto podem prejudicar quanto curar, psicológica e fisicamente: expressar-se de modo positivo se associa à melhor saúde e sobrevivência; fazê-lo de modo negativo, gera repercussões em adoecimentos diversos. Alves (2011) entende que ampliar a interação entre os indivíduos, a maior expressão de sentimentos e opiniões, a autonomia e as relações interpessoais aumenta o poder das modalidades de comunicação. Em nenhum momento se deve inibir o corpo de se expressar no mundo; ao contrário, a expressão (de cuidados, afetos e emoções) no mundo é a forma mais dinâmica para se manter vivo. Somos animais sociais, e o ato de ouvir, tocar, sentir, ver o outro faz parte da natureza social humana. O ser humano precisa relacionar-se pelos diferentes meios de que dispõe e por diversos motivos: necessidade de se comunicar, aprender, ensinar, dizer que ama o próximo; exigir melhores condições e qualidade de vida, melhorar o seu ambiente externo, expressar desejos e vontades. Vive-se em grupos (de familiares, vizinhos, amigos, trabalho, lazer, entretenimento), e neles o ser humano interage, cresce e compartilha influências mútuas.
Não se deve calar. Em toda a vida e sob quaisquer circunstâncias, não se deve calar. O corpo não deve deixar de se expressar no mundo. Não se pode pensar que certos tipos de expressão no mundo resultem em “piorar as coisas”, “dar briga”, “não vai mudar nada”, “vai magoar o outro”, “ele não vai entender”. Calar é uma injustiça para si: o indivíduo deixa de expressar como se sente, como percebe as coisas no mundo, emudece a percepção, coleciona ressentimentos (sente e re-sente), repisa dores. Calar é uma injustiça para o outro, que deixa de entender, apoiar, ouvir, corrigir, desculpar. Calar a expressão cria desgastes, abismos, coleciona mágoas, decepções e rancores (MARTINS; VOLPI, 2016).
Quando a boca se cala, o corpo precisa falar e deixar-se expressar no mundo.
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REFERÊNCIAS
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BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, A. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 13. ed., refomul. ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2001. 490 p.
CRUZ, M. Z.; PEREIRA JR, A. Corpo, mente e emoções: referenciais teóricos da psicossomática. Rev. Simbio-Logias, v. 4, n. 6, p. 46-66, dez. 2011.
GOLEMAN, Dl. Inteligência emocional. Tradução: Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011.
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MARTINS, Á.; VOLPI, S. O corpo na psicoterapia: o inconsciente enquanto expressão corporal. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (Orgs.). In: XXI Congresso Brasileiro de Psicoterapias Corporais. Anais... Curitiba: Centro Reichiano, 2016. p. 93-105.
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