Foto: AP Photo/Charlie Riedel
Da Redação / g1
Por Poliana Casemiro
Circula nas redes sociais a afirmação equivocada de que um estudo da Nasa aponta que o Brasil ficará inabitável dentro de um prazo de 50 anos por causa das altas temperaturas. É fato que o mundo está mais quente e o país também está vivendo as consequências, mas o estudo não diz isso.
A pesquisa existe e é de 2020, mas ganhou repercussão somente neste mês. Ela foi feita por pesquisadores que trabalham na agência espacial americana e foi publicada na "Science Advances", uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo.
O trabalho faz alertas importantes sobre o aumento de eventos com temperaturas e umidade além do suportável para as pessoas.
No entanto, não cita o Brasil, não tem dados relevantes sobre a América Latina, e muito menos diz que esses locais ficariam inabitáveis em determinado período.
Primeiro, é preciso saber que a pesquisa faz uma análise de dados históricos entre 1979 e 2017 e não faz uma projeção para 2070, como como sugerem os conteúdos que circulam recentemente.
O estudo é assinado por Colin Raymond (autor principal), pesquisador que atua na Nasa, e que mapeou as temperaturas do bulbo úmido. Essa não é a temperatura dos termômetros, mas uma medida que relaciona calor e umidade do ar para avaliar o estresse térmico.
A partir de uma certa temperatura do ar, o corpo precisa regular a própria temperatura pela transpiração. Para que isso aconteça, o suor precisa evaporar, mas em um ambiente muito úmido é difícil que isso aconteça. O limite para a sobrevivência seria de 35°C nesta medição.
O que a pesquisa descobriu analisando dados entre 1979 e 2017 é que a Terra já passou por eventos em que chegou a esse limite e que os eventos extremos, com essa temperatura entre 30°C e 31°C, vêm aumentando ao longo do tempo.
Essas condições, próximas ou além da tolerância fisiológica humana prolongada, ocorreram principalmente por apenas 1 a 2 horas de duração. Elas estão concentradas no sul da Ásia, no litoral do Oriente Médio e no litoral sudoeste da América do Norte.
O que os especialistas explicam
Pedro Camarinha, PhD em mudanças climáticas e pesquisador no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), explica que o estudo é relevante e bem conhecido no meio científico, mas que a informação está distorcida.
Não há absolutamente nenhuma informação sobre isso e qualquer base científica para dizer que o país ficaria inabitável. O estudo não faz uma projeção de como a Terra ficaria em 30 anos, até porque isso dependeria da análise de outras variáveis e não só da temperatura de bulbo.
— Pedro Camarinha, PhD em mudanças climáticas e pesquisador no Cemaden.
Segundo o especialista, a forma como a informação vem sendo divulgada faz parecer que o destino do país seria se tornar inabitável em 50 anos, o que distorce os esforços de medidas de adaptação climática e a capacidade do próprio ser humano de se adaptar aos extremos.
“Esse tipo de afirmação ignora as tentativas de reversão e até mesmo a capacidade do ser humano de se adaptar”, explica Camarinha.
Karina Lima, climatologista e divulgadora científica, reforça que a afirmação de que o Brasil ficará inabitável em 50 anos não está no artigo e que nem seria possível afirmar isso apenas com as informações que estão na pesquisa.
Concluir que o Brasil se tornará inabitável é um salto grande em relação às conclusões deste estudo específico. É cravar algo que este estudo não cravou.
— Karina Lima, climatologista e divulgadora científica.
A especialista reforça que o mundo vem ficando mais aquecido e que o estudo é sim um alerta para reforçar as medidas de contenção do aquecimento global.
“É essencial que consigamos limitar o aquecimento global bem abaixo dos 2°C para diminuir os riscos. Também é fundamental a adaptação às mudanças climáticas, pois precisamos nos preparar, aumentando nossa resiliência, para o mundo que já temos e para o que teremos”.
Então, como o Brasil e a projeção foram parar na história?
Em 2022, dois anos depois que a pesquisa foi publicada, a Nasa lançou um artigo que fala sobre a possibilidade de lugares na Terra ficarem quentes demais para se sobreviver.
O texto cita a pesquisa, falando sobre a medição da temperatura de bulbo úmido e os avanços para ter mais dados sobre o assunto, com uma entrevista de Raymond, autor do estudo.
No último parágrafo do artigo, ele é perguntado sobre se há uma projeção para o futuro sobre quando as temperaturas de bulbo passariam de 35°C de forma regular e quais seriam as áreas mais vulneráveis.
Antes de responder, ele diz que essa é uma projeção difícil e que é um processo complexo, mas cita modelos climáticos que apontam que algumas regiões provavelmente excederão essas temperaturas nos próximos 30 a 50 anos.
Na sequência, diz que Ásia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho, o leste da China, partes do sudeste da Ásia e o Brasil podem chegar a esses níveis.
Apesar de citar que é possível que haja o registro dessas temperaturas no Brasil, assim como já foi identificado em outros lugares do mundo, ele não diz que o país ficaria inabitável.
Karina Lima, climatologista e divulgadora científica, explica que o que aconteceu é que as pessoas passaram a compartilhar essa breve citação de Raymond fora de contexto, pois o próprio autor do estudo alerta que essa é uma afirmação difícil de se fazer, mas ela acabou sendo colocada como sendo parte do artigo.
"O texto de 2022 cita o Brasil como uma das regiões suscetíveis a ter eventos que excedem temperaturas de bulbo úmido de 35°C no futuro, não fala sobre se tornar inabitável nem informa sobre regiões mais afetadas no país. É importante, ao se trazer uma informação, que seja creditado o artigo científico de onde ela veio, pois neste caso, o único artigo referenciado só é citado indiretamente, sem título ou link, e muitas das informações veiculadas sequer constam no artigo", pontua.
E o que pode acontecer com o país?
O estudo não diz que o país vai ficar inabitável até 2070, mas mostra um cenário alarmante para o mundo e que, sim, se aplica ao Brasil.
O ano de 2023 foi de recordes de calor, com eventos climáticos extremos. Neste ano, os sete primeiros meses do ano são os mais quentes já vistos.
Carlos Nobre, um dos maiores especialistas brasileiros sobre o tema, explica que os dados recentes de calor são surpreendentes e que a resposta de redução das emissões de gases do efeitos estufa, que aquecem o mundo, estão ocorrendo de forma muito lenta e que isso pode colocar não só o país, mas o mundo, em risco.