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Por Gil Piva
O que está acontecendo com o cinema? Perdão! Pergunta errada. O correto é hastear o ponto de interrogação de outra forma: o que está acontecendo com a crítica?
Termino de assistir ao filme Superman, de James Gunn, com um gosto amargo na boca. Fácil entender a razão. Queremos ver o Superman. Não vemos o Superman. O mundo muda. A cultura se transforma. As interpretações - e, portanto, as releituras - ganham novas perspectivas. Entendo esse processo. O que me espanta é a qualidade duvidosa de uma parcela significativa da produção artístico-cultural - e da crítica - nos dias de hoje.
Nas últimas décadas venho percebendo como os críticos, em festa, se reservam a fundamentos teóricos e análises interessantes a obras que, a meu ver, são tão desinteressantes quanto desnecessárias para textos (ou canais) que tratam de “variedades culturais”. Fiquemos com a palavra escrita.
Quem aprecia textos assim, sabe o quanto merecem ser lidos como observados, e até escutados. A metáfora é válida, pois se tem em mãos a experiência do leitor aprendiz dedicado ou o desprendimento instalado na intimidade de um leitor com seu colunista preferido.
Há algumas explicações possíveis e plausíveis para o que tem ocorrido. Mario Vargas Llosa, em seu livro A civilização do espetáculo (ed. Objetiva), posiciona a tese de que a cultura artística se perdeu aborrecida devido ao entretenimento de caráter apenas mercadológico, sem profundidade, um espetáculo da banalidade. Este é um ponto. Mas não explica tudo. Também há obras nesse esteio que se tornaram clássicas: de pura diversão, o trajeto delas nos obrigou a vê-las com exata seriedade porque essa tal diversão foi disposta com fascinante seriedade.
Há, ainda, os que enxergam essa posição dos críticos como algo próprio dos novos conflitos culturais, das diatribes do politicamente correto: não se pode falar mal de obras escritas por negros, não se deve menosprezar filmes que retratam pobres, nem deixar de enaltecer livros que relatam as vozes “silenciadas” das minorias. Embora a resistência ideológica favoreça essa situação, este lado da moeda tampouco dá conta do panorama de que falo.
Goste dos temas ou discorde das ideias, o melhor do cinema nacional, com frequência, se posiciona ao social: Terra em transe, Quanto vale ou é por quilo?, Ônibus 174, Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Auto da Compadecida, etc.
O novo Superman pode ser visto por esses dois prismas? Evidente que sim. No rumo do oportunismo de mercado, se aproveita da era Trump? Sem dúvida. A história foi contextualizada para representar a excentricidade recente dos EUA? A ocasião faz o ladrão. Mas isso não é novo.
Nos anos 90, o cardápio era rico e variado. Os EUA sempre estiveram no centro das críticas - de obras mercadológicas, inclusive. O exterminador do Futuro (1 e 2), O show de Truman, O último dos Moicanos, Clube da luta, Thelma & Luise, Assassinos por natureza e o primeiro Superman, com Christopher Reeve, é visto como um emblema crítico à Guerra Fria. Hoje, só os “fadiguentos”, como diz um amigo, ousaria discordar de que esses filmes se tornaram clássicos.
Em síntese, nem todos esses filmes receberam elogios ou reprovações consensuais em seu tempo. E a lista, pastoreando com os críticos essa relação intranquila (e saudável) de erros, acertos e riscos, não teria fim.
É óbvio que a desarmonia entre público e crítica é quase uma expressão intrínseca à história do jornalismo. No passado, essas oposições se davam por motivos transparentes: os críticos ficavam do lado do que era menos acessível, complexos e herméticos. O problema é que em algum momento eles passaram a acreditar demais em obras negligentemente triviais até para o público que as consome.
Nesses últimos anos, e diante dessa corriqueira situação, comecei a desconfiar dos críticos profissionais, de obras que eu testemunhava e de mim mesmo. O crítico entendeu o filme? Eu entendi o filme? Alguém me entende? Em conversas com amigos – em meu socorro -, descobri que eu não era voz solitária.
Por isso retomo a questão inicial: o que sucede com os críticos? Sinto saudades de quando eles se debatiam em obras que eu não entendia nada. Era um prazer sádico, que exigia de mim tremenda aplicação; em suma, me sentia desafiado, ainda que desafiado para, no fim, discordar e ter a certeza de que eu não voltaria a assistir vários desses filmes. Em certos cenários, o exagero do ininteligível é o chato.
Esse assunto me obriga a buscar na memória o saudoso Daniel Piza. Para quem não se lembra, ou não o conheceu, Piza era um repórter e escritor que exercia o ofício da crítica com ecletismo provocador e delicado. Poucos sabiam escrever - e pensar como ele. No Caderno 2, do Estadão, onde transitou com marcas mais fluentes seu jornalismo cultural, revelou estilo e se fez referência. Morreu jovem, em 2011, aos gloriosos 41 anos, vítima de um aneurisma.
Recordo que, aos 23 anos, adquirira seu livro recém-lançado Jornalismo cultural (ed. Contexto). Tinha-se ali um pequeno livro direto, simples, claro e elegante, dirigido à orientação de jovens dispostos a praticar a crítica cultural em periódicos.
Piza pertencia a uma classe de colunistas e repórteres que eram eruditos e cultos, com o objetivo de descobrir e redescobrir, a favor da linguagem, o que era de domínio de uma obra, com a indiscutível pretensão de exibir o que também é de seu domínio. Afinal, a voz de uma obra de arte (com espaço para o trivial) só é ouvida se, antes, não houver confusões nas profundezas de nossa própria voz.
Em um de seus mais impecáveis aforismos, Piza escreveu: “O texto ideal tem o frescor do primeiro e a urgência do último”. Para a crítica, meu juízo é o mesmo.
Gil Piva
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