Enquanto espero a minha vez numa fila qualquer, um senhor de uns 70 anos se aproxima e puxa conversa:
– Eu não te conheço de algum lugar?
“É o tipo de observação que me assusta”, penso enquanto conto quantas pessoas há ainda na minha frente. Antes que eu emendasse uma resposta educada, continuou:
– Espera, você não é aquele colunista do jornal? – Pergunta sorridente.
Balanço a cabeça num gesto afirmativo e constrangido. Afinal, sou tímido.
– Sim, sou eu.
Por um instante ficamos em silêncio. Ele não sabe o que dizer agora, e eu não sei o que pensar.
De repente, ele solta outra frase:
– Eu tenho um bom assunto para você escrever.
– É mesmo? Qual?
– Sobre os antigos e necessários saberes.
Coço a cabeça. Tento mostrar interesse:
– Por exemplo?
– Ora, para um colunista você não é muito esperto.
A fila não anda. Minha cabeça começa a coçar mais. Sinto que a conversa atraiu algumas atenções disfarçadas. Também queria me disfarçar e sair de fininho. Nunca sei onde esses papos terminam.
– É simples, meu rapaz. Precisa explicar como a tecnologia acabou com tudo, desde a calculadora até essa tal de IA.
Ele não está errado.
– Concordo. Pensarei a respeito.
– É uma vergonha! Ninguém mais sabe fazer contas, escrever ou pensar sozinho. Um absurdo! – Ele se empolga, aumenta um pouco o tom da voz.
– De fato! O senhor está certíssimo. E creio que as fake news são o apocalipse desse enredo – concluo feliz da vida, confiante de que lancei uma ponderação valiosa.
– Que história é essa? Você está misturando as coisas. Isso aí que você falou tem a ver com controlar nossa liberdade individual.
Espanto. Ele fica corado, arqueia as sobrancelhas, olho em volta e noto que finalmente a fila volta a andar.
– Que é isso! Eu aqui falando sério, e você vem com esse papo de esquerdista...
Parabéns, Gil! É a segunda vez em quinze dias que te chamam de esquerdista. Estás condenado ao inferno!
Mas assumo o risco:
– Olha, o senhor está enganado – ele arregala os olhos. – As fake news, em razão das ideologias que carregam, são responsáveis pelas maiores incompetências de hoje.
– Como assim?
– Se antes um erro de cálculo de um engenheiro, matemático ou economista podia causar a queda de um avião, de um edifício ou a derrocada de um plano econômico, atualmente a desinformação e o desejo de que certas vontades ideológicas prevaleçam acima das necessidades mais básica da sociedade nem sequer cogitam repensar os cálculos e seus possíveis equívocos trágicos.
Silêncio.
– A mesma coisa se repete nas áreas da ciência e da saúde: defendeu-se a cloroquina apesar da falta de evidências científicas; existem casos, como é sabido, em que muitos pacientes se recusam a ser atendidos por este ou aquele médico por puras discordâncias políticas ou crenças diferentes.
– Isso sempre existiu!
– Sim, mas talvez não com tamanho radicalismo. Eu te pergunto: você, que valoriza tanto “os antigos e necessários saberes”, em algum momento desconfiou de algum vídeo da internet e correu para investigar o assunto num jornal?
– Esses jornais monopolizam tudo.
– E os livros? Já deixou o celular de lado para encontrar auxílio nas velhas e boas páginas de um bom manuscrito ou tratado impresso? A leitura é a melhor forma de exercitar o pensamento individual.
Pausa.
Me chamam. Eu era o próximo. Faço o meu pedido. Quando volto a buscar o rosto do senhor atrás de mim, só encontro uma última sentença no vácuo:
– Esquerdista!
P.S.: Esse episódio é verdadeiro, contendo não mais que uma ou outra linha de divagações e inconsistências.
Gil Piva
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