
Bolsonaro, nos últimos anos, foi se diluindo. Seu fim se resume a doses temperadas de insolentes (e monótonos) soluços. É uma ironia inevitável. Para esse estado reduzido, recomendo muitas cebolas.
Günter Grass ganhou o Nobel em 1999. Publicou O Tambor, sua obra-prima, em 1959. Não é um livro fácil. Repleto de trechos longos e descrições intensas nas suas 600 páginas, a história é narrada ora em primeira pessoa, ora em terceira. Percorrendo todo o período da Segunda Guerra Mundial, a obra – embora a Alemanha nazista apareça apenas como pano de fundo – oferece uma turbulência crítica evidente.
O Tambor conta a vida de Oskar Matzerath, um menino que, aos três anos de idade, decide que não crescerá mais. Com um tambor de lata, Oskar marca o ritmo daquela época, contextualizando os absurdos de um tempo e de uma sociedade moralmente imatura. Tanto é que o personagem-narrador inicia seu relato já adulto e ainda pequeno, e internado em um sanatório. A loucura política é a identidade de uma anomalia histórica. Em alguns episódios, ele até retoma seu crescimento, mas não mais que pouquíssimos centímetros. O som impertinente do tambor marca a desumanização: ritmo desajustado e ambíguo.
Uma das passagens interessantes ocorre em uma espécie de bar subterrâneo chamado O Porão das Cebolas. Mais adiante na história, Oskar se torna membro de uma banda de jazz; neste espaço, os clientes recebem cebolas para chorar. Exato. As pessoas traumatizadas pela guerra não conseguem chorar. Trata-se de um instrumento que dá acesso às emoções condenadas. Para suportarem o sofrimento e tentar se humanizar, as cebolas, junto com o espetáculo musical, estimulavam, mesmo que artificialmente, sensações de culpa, vergonha, tristeza e vazio.
Talvez essa seja a cena mais importante do livro. Toda a carga psicológica provocada pelo horror da guerra é representada em tom semelhante e com linguagem simbólica; ou seja, é um misto de grotesco, de melodrama, de surrealismo, de encenações, de gestos (auto)destrutivos, e de deliberadas experiências. As crises de choro de Bolsonaro depois de sua prisão domiciliar me fazem lembrar O Porão das Cebolas. Como Oskar Matzerath, Bolsonaro é, ao seu estilo, uma criança crescida.
O choro de Bolsonaro parece um gesto de seu primitivo recalque, de uma vida avessa à empatia, na contramão do respeito e compreensão das dores dos outros – relações reflexivas que produzem nossos sentimentos verdadeiros, estabelecidos num tipo de contemplação da natureza humana. E, detalhe, o fato de muitos evangélicos que o seguem não notarem a falta dessas equivalências na figura de Bolsonaro implica, inclusive, uma ignorância religiosa cristã. Mas isso é outra história.
Seria a vida de Bolsonaro, recheada de bravatas, uma tensão patológica? Sua fúria babada a pontapés em cada fala seria uma manifestação sintomática? Ou seria tudo isso sua incontornável sustentação narcísica?
Pactuo com essas possibilidades analíticas de sua pessoa. A dúvida que paira sobre esse comportamento deformado e deformador estaria em distinguir quais são, de fato, as causas de seus recentes episódios de choro. Como no caso das cebolas, as lágrimas de Bolsonaro estão povoadas pela lição de alguém que é incompetente até para chorar. Foram necessárias a condenação e a prisão para que viesse à tona. Para ele, a maior violência que dá carga emocional ao seu choro é a perda definitiva do poder que exerceu – sempre usado para devorar a gargalhas os inimigos.
N’O Porão das Cebolas, as pessoas eram protagonistas em um tempo irreconhecível, e a vontade de chorar era a maneira de transgredir aquela violência, fugir do esgotamento físico e mental, como se, ao descobrirem o choro perdido, reconstruíssem a realidade também perdida e reencontrassem, de alguma forma, a vida amputada.
Bolsonaro não padece dessa extensão. Em sua medíocre compreensão de mundo, mesmo que ele esteja sendo visitado por assombros e temores, está longe de entender que o descanso das lágrimas só é genuíno se confrontado com eles. Dito de outro modo, o conflito de Bolsonaro é irrelevante para Bolsonaro porque Bolsonaro nunca devassou febrilmente o próprio Bolsonaro. E jamais conseguirá reconhecer sua cela como algo além de um espaço causador de sofrimentos, enquanto que n’O Porão das Cebolas se apresenta um ambiente organizador de lutos e cicatrizes.
No choro antiquado de Bolsonaro, não há alívio ou redenção; afinal, ele não é capaz de acordar nem de aprender com as cebolas de Günter Grass. Elas nos ensinam que os pesadelos não se encerram quando acordamos, mas quando nosso interior chora em silêncio.
Gil Piva
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